Texto de Leonardo Martinelli na Revista CONCERTO de junho de 2011
O mestre pianista
Houve época em que deparar-se com o som de um piano ao longe nas ruas da Pauliceia Desvairada era tão comum como um chuvisco na então terra da garoa. Era tamanha a presença do instrumento no cotidiano cultural da cidade que Mário de Andrade chegou a cunhar o termo “pianolatria” para se referir a essa verdadeira paixão paulistana. Naquele tempo, não havia universidades de música e os conservatórios eram escassos. Aprendia-se piano com uma professora de bairro e as salas de jantar eram convertidas em miniauditórios para as audições de alunos. São essas as primeiras memórias musicais que veem à mente do pianista Gilberto Tinetti.
Um dos mais conceituados professores de piano do país, sob sua orientação passaram (e passam) diversas gerações de instrumentistas hoje em atividade no Brasil e no exterior. Figura serena, de fala calma e envolvente, há mais de vinte anos Tinetti conversa diariamente com o grande público por meio do “Pianíssimo”, programa que produz e apresenta na Rádio Cultura FM de São Paulo. Além disso, assina há mais de uma década a curadoria dos concertos da Fundação Maria Luisa e Oscar Americano, que assim se tornou um dos mais importantes espaços dedicados à música de câmara no país.
Aposentado de suas funções pedagógicas na USP (de cujo departamento de música foi um dos pioneiros), Tinetti aproxima-se dos oitenta anos com uma atarefada agenda de apresentações musicais – este mês será solista no Concerto nº 2 de Liszt junto à Orquestra do Teatro São Pedro –, aulas particulares e gravações de seu programa de rádio. Foi na sala de música de seu apartamento em São Paulo, entre paredes de partituras e dois pianos de cauda, que Tinetti recebeu a Revista CONCERTO para conceder a seguinte entrevista:
Você foi aluno de um dos mais importantes nomes do piano brasileiro, Magdalena Tagliaferro (1893-1986). De que maneira iniciou seu contato com ela e qual a importância dessa experiência em sua formação como pianista e músico?
Apesar de ter tido diversos professores, o trabalho com Magdalena Tagliaferro foi marcante. Na década de 1950, eu era aluno de Hans Bruch, que me incentivou a me inscrever nas master classes que a Tagliaferro dava anualmente em São Paulo. Lembro-me de que certa vez ela chegou a dizer que minha interpretação para o concerto Imperador de Beethoven era um tanto diabólica [risos]. Em 1957, foi organizado, no Rio de Janeiro, um concurso de piano, cujo prêmio era o financiamento de uma temporada de estudos com a Tagliaferro em Paris. Acabei sendo um dos contemplados e fiquei três anos na França, exclusivamente para estudar piano. Suas aulas eram geralmente feitas em forma de master classes, todos seus alunos se reuniam em sua casa e tocavam para ela, que então fazia publicamente seus comentários e observações. Claro que foi importante receber diretamente dela orientações quando eu estava ao piano, mas confesso que aprendi muito mais ouvindo as lições que os outros colegas recebiam.
Afinal, em que consiste a Escola Tagliaferro?
Por conta de sua nomeação como professora do Conservatório de Paris (em 1937), Tagliaferro teve que sistematizar toda sua técnica, o que possibilitou a elaboração de um sistema de ensino. Tanto que, inicialmente, realizei com uma das assistentes de Tagliaferro, Nellie Braga, minha introdução à Escola Tagliaferro, que na parte técnica dava grande ênfase ao relaxamento muscular e aprimorava os fundamentos de uma escola francesa de piano que ela, por sua vez, havia recebido de Alfred Cortot (1877- 1962). Porém, além do aspecto técnico, a Escola Tagliaferro foca a qualidade sonora, o equilíbrio da interpretação. Sempre foi contra a rapidez e agilidade puramente pirotécnicas.
Além de todo esse rico ambiente cultural, Paris foi importante para mim também porque foi onde pude tocar obras de Francis Poulenc e Heitor Villa-Lobos para os próprios compositores
Independentemente das aulas com Tagliaferro, como a estada em Paris foi importante para sua formação artística?
Ah, foram anos que mudaram minha vida. Na década de 1950, Paris era a liderança cultural absoluta no mundo. Foi o momento em que, além de estudar música, despertei o gosto por outras artes, pelo cinema, pelo teatro. E isso foi fundamental, pois o artista precisa ter a mente aberta para outros interesses, desenvolver a sensibilidade em outras artes. Isso ajuda a desenvolver a imaginação. De certa maneira, acho que era uma cultura tecnicista do instrumentista que Mário de Andrade estava criticando quando criou o termo “pianolatria”. Além de todo esse rico ambiente cultural, Paris foi importante para mim também porque foi onde pude tocar obras de Francis Poulenc e Heitor Villa-Lobos para os próprios compositores.
Após essa temporada de estudo no exterior, que incluiu ainda estudos com Friedrich Wührer na Alemanha e o concurso da Academia Internacional de Verão do Mozarteum de Salzburgo, em 1959, você por fim fixou-se no Brasil e desenvolveu sua carreira por aqui, numa época em que muitos preferiram investir numa carreira no exterior. Como ocorreu essa decisão?
Eu voltei ao Brasil por razões familiares. Eu até já estava começando uma carreira no circuito internacional, mas a saudade de casa bateu forte. Sou filho único e, quando saí do país, deixei minha mãe sozinha por três anos – algo penoso para ela, pois naqueles tempos não tínhamos as facilidades de comunicação e transportes que temos hoje. Eram tempos em que uma simples ligação telefônica internacional tinha que ser agendada com semanas de antecedência, e a viagem entre Paris e São Paulo era uma aventura de 27 horas, que até envolvia escala na África. Além disso, assim que voltei para o Brasil, surgiu o convite para dar aulas nos cursos da Pró-Arte de São Paulo e, quando me dei conta, estava profundamente envolvido com a cena musical brasileira.
Mas digo com plena convicção que não me arrependo, pois acho que meu esforço rendeu muitos frutos. Hoje vejo meus alunos em atividade nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil e me sinto satisfeito com meu trabalho.
...a trajetória do Trio Brasileiro ao longo de seus 32 anos de existência foi mesmo pioneira, pois chegamos a gravar discos e a realizar apresentações no exterior
Um ponto importante em sua carreira foi o trabalho com o Trio Brasileiro, ao lado do violinista Erich Lehninger e do violoncelista Watson Clis. Passados mais de trinta anos desde a fundação do grupo, como analisa hoje o trabalho realizado por vocês?
Foi uma experiência muitíssimo importante, pois sempre tive como certa uma vocação natural para a música de câmara. Além disso, se pensarmos que até hoje em dia o Brasil carece de grupos regulares de música de câmara, a trajetória do Trio Brasileiro ao longo de seus 32 anos de existência foi mesmo pioneira, pois chegamos a gravar discos e a realizar apresentações no exterior. Curiosamente, o Trio Brasileiro foi formado meio que por acaso, durante o Festival de Curitiba de 1975, quando era dirigido pelo maestro Roberto Schnorrenberg. Ele praticamente nos obrigou a tocar o Trio de Ravel, uma das obras mais difíceis desse repertório, para uma apresentação no festival. Foi a partir daí que começamos a tocar juntos regularmente.
Além do repertório de câmara instrumental, você realiza há anos um intenso trabalho de música de câmara vocal, por exemplo, a partir de suas parcerias com Carmen Monarcha ou com o duo de Gabriella Pace e Adriana Clis. Quais os desafios específicos desse tipo de música?
Penso que o principal desafio é a busca de uma sonoridade adequada em conjunto com a voz. Na música de câmara instrumental, a individualidade dos instrumentos é importante; eles são chamados a exercer uma participação decisiva, com sonoridades bem abertas. Na música vocal, tem-se que adaptar essa sonoridade – sem que, no entanto, se abaixe a tampa do piano – para não encobrir as vozes. Eu gosto de fazer música com voz com piano aberto, pois, no contrário, o som se empobrece. Mas, para garantir o equilíbrio entre as partes, é necessário um árduo trabalho de sonoridade, além, é claro, de toda uma relação rítmica, toda uma lógica de respiração e fraseado específica da música vocal.
Este mês você solará o Concerto nº 2 de Liszt, com a Orquestra do Teatro São Pedro. Qual a relação que você tem com a obra de Liszt?
Confesso que o meu repertório tem pouco Liszt. Mais recentemente preparei algumas peças solo dele, mas destaco principalmente as suas canções para piano e voz, uma faceta de seu repertório ainda pouco conhecida do grande público. Claro que tenho ciência da importância de sua obra, como a Sonata em si menor, obra de que gosto muito, mas que é uma peça que, como intérprete, nunca me atraiu.
Entretanto, sempre tive uma fascinação pelo seu Concerto nº 2, que tenho há muitos anos em meu repertório. Admiro o conteúdo musical desse concerto, a maneira como ele apresenta e desenvolve seus materiais. É uma obra mais lírica, contando inclusive com momentos de sensualidade. Em seu conjunto é um grande desafio para o intérprete lidar com toda essa diversidade.
Como professor – da USP, particular ou em festivais –, você naturalmente trava há anos um contato direto com as novas gerações de pianistas brasileiros. O que tem mudado desde o início de suas atividades pedagógicas até os dias de hoje e qual impressão você tem dessa novíssima geração de pianistas?
As coisas mudaram muito – e para melhor. Nos primeiros vestibulares, o nível dos alunos que apareciam era precário. Aos poucos, fui sentindo uma gradativa melhoria no nível dos candidatos, e hoje temos em nossas universidades jovens de excelente nível. São músicos com interesses musicais mais diversificados. Antes, todo pianista queria ser um grande concertista. Hoje, além disso, temos aqueles abertos à música de câmara e à música contemporânea, por exemplo. Acho que as coisas vão bastante bem e, em geral, acho a geração atual mais bem preparada.
Obrigado pela entrevista.