Maestro e pesquisador Rubens Ricciardi restaura manuscritos e grava algumas das músicas mais antigas registradas na história brasileira
Quarenta anos atrás, um tesouro era encontrado nos arquivos de um convento carmelita em Mogi das Cruzes, no interior de São Paulo. Dentro de um livro do século XVIII, estavam escondidos manuscritos das músicas mais antigas registradas e encontradas até então na história brasileira. Após quase três séculos de silêncio, elas voltaram, enfim, a soar.
Desde dezembro, a coletânea Música do Brasil colônia: as solfas de Mogi das Cruzes pode ser ouvida gratuitamente no YouTube e nas principais plataformas de streaming. São sete faixas que receberam uma gravação inédita, liderada pelo musicólogo, maestro e professor Rubens Russomanno Ricciardi, com interpretação do Ensemble Mentemanuque, grupo de câmara formado por músicos da USP Filarmônica.
O álbum é a continuação de um projeto iniciado em 2022, quando Ricciardi se ocupou de uma edição crítica das partituras a convite do produtor Déo Miranda. Com recursos obtidos pelo edital Rumos Itaú Cultural, eles tornaram público o material, até então restrito a pesquisadores.
A ideia do projeto, no entanto, não era apenas divulgar o fac-símile, mas apresentar as músicas de forma que pudessem ser efetivamente tocadas hoje. Para isso, foi preciso encarar alguns desafios. A autoria delas é anterior à adoção da barra do compasso na notação musical. Além disso, as matrizes estavam, na maior parte, incompletas, exigindo um mergulho nas sonoridades coloniais e um exercício criativo em diálogo com os originais.
Do total de 12 obras catalogadas pelo pesquisador, apenas sete eram passíveis de edição. O critério adotado por ele foi trabalhar somente a partir das faixas preservadas em, no mínimo, 75% do que seria a versão integral. “Eu me inspirei bastante nos colegas da arquitetura, que restauram prédios em ruínas. O que faço é completar lacunas. Tentei reproduzir as intenções dos compositores, mas isso é impossível. Então existe certa invenção”, explica Ricciardi.
Um exemplo desse processo aconteceu com Litaniae lauretanae beatae Mariae Virginis [Ladainha de Nossa Senhora], uma das peças mais robustas do conjunto. Segundo os registros, ela havia sido criada para orquestra de cordas e quatro cantores, mas a única linha de instrumento sobrevivente foi a do primeiro violino.
Sob inspiração dela, foi possível propor novas escrituras para o segundo violino, a viola e um baixo contínuo. A melodia embala o coro de quatro vozes, cuja letra permaneceu intacta, em latim, seguindo os preceitos da música produzida ao estilo do cânone católico. “Essa é uma nova proposta dentro de uma tendência mundial de reconstrução poética”, completa o pesquisador, que dá aulas no Departamento de Música da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, vinculada à USP.
Parte dos manuscritos carrega a assinatura de Faustino do Prado Xavier. Ele atuou como mestre de capela em Mogi das Cruzes entre 1729 e 1931, quando teria produzido o material. Não se sabe ao certo se ele seria o autor ou apenas o responsável pelas cópias. O nome de seu irmão, Ângelo do Prado Xavier, também figura em alguns dos documentos, como copista.
Ângelo foi responsável por um registro que propõe uma leitura diferente para o Ex tractatu Sancti Augustini [Tratado de Santo Agostinho], única peça do conjunto também existente fora de Mogi. Composta em 1648 pelo português Manuel Cardoso, chegou a ser editada em livro, mas a versão encontrada aqui apresenta mudanças que potencializam a performance das vozes. O original serviu para “completar” a nova edição da cópia deixada pelo brasileiro.
Outra obra de que Ricciardi fala com entusiasmo é Matais de incêndio, apontada por ele como o primeiro exemplar de música popular brasileira. Diferentemente de suas irmãs, é a única cantada em português e, segundo o pesquisador, carrega um forte apelo erótico. “É difícil concluir se é uma obra religiosa ou profana”, diz.
Dela restaram apenas as letras para soprano, tenor, contralto e baixo, sem parte instrumental. O acompanhamento foi construído a partir das vozes e, para a gravação, foi introduzida uma base percussiva, reforçando seu aspecto popular.
O conjunto inclui, ainda, três peças a cappella, com função litúrgica, que se mantiveram intactas: Bradados para Domingo de Ramos e Sexta-feira da Paixão, Bradados para Sexta-feira da Paixão e Tratos para as profecias de Sexta-feira da Paixão. Além delas, há Regina Caeli [Rainha do céu], “a mais alegre de todas”, segundo Ricciardi, que se inspirou nas construções harmônicas do século XVIII para criar sua linha de baixo contínuo.
O esforço de estruturar acompanhamentos para criações eminentemente vocais tem um viés didático, pois eles facilitam a interpretação dos cantores. Com isso, o musicólogo busca não apenas viabilizar a execução pública desse material, mas o tornar mais conhecido e valorizado.
“Essas obras têm características importantes que devem ser estudadas e estar no repertório de corais e orquestras”, defende Ricciardi. “A partir do século XVIII, temos compositores realmente inventivos no Brasil, mas esquecemos de trezentos anos de história da nossa música. Divulgar esse repertório é uma missão e também uma questão de soberania.”