Texto de Leonardo Martinelli na Revista CONCERTO de abril de 2012
Em uma de suas deliciosas Comédias da vida privada, Luís Fernando Veríssimo diz que “mãe mesmo, só tem duas: a italiana e a judia”. No Brasil e no mundo afora, o estereótipo da mamma italiana é largamente difundido, no qual amor, emoções intensas e chantagem são regadas a generosas doses de molho ao sugo.
Curiosamente, essa figura feminina não marcou presença na vida do pequeno Arturo Toscanini. Nascido em 1867 na cidade italiana de Parma, Arturo teve como pai um alfaiate que se engajou nas batalhas garibaldianas, e que, por isso, frequentemente estava ausente. Durante um tempo, Arturo chegou a ser criado pelos avós e, aos 9 anos, ganhou uma bolsa para estudar no conservatório da cidade, quando então passou a morar no dormitório da instituição. Durante os noves anos em que lá esteve, sua mãe jamais foi visitá-lo. “Nunca me amou. E eu nunca a amei”, chegou mesmo a afirmar um dos maiores regentes do século passado, que ficou conhecido por seu estilo durão, quando não violento, de comandar seus músicos. Parece, assim, que o trauma freudiano foi vertido numa poderosa força musical.
Em seus anos de formação, Toscanini se especializou de forma notável ao violoncelo, ao mesmo tempo que tomou aulas de piano e de composição. Foi como instrumentista que obteve seu sustento durante a adolescência, quando já integrava o naipe de violoncelos da orquestra do Teatro Regio de Parma. Em um dos cachês como segundo violoncelo no La Scala de Milão, tocou na estreia de Otello, de Verdi, momento em que iniciou uma estreita relação com a obra do compositor.
Em 1886, Toscanini embarcou num navio rumo ao Rio de Janeiro, na condição de spalla dos violoncelos e assistente de regente de coro de uma companhia itinerante de ópera. Quando a trupe já estava instalada na então capital do Império, no dia de sua estreia com a apresentação de Aida, de Verdi, o deus Destino fez-se presente e mudou a vida do violoncelista.
Muitos detalhes ainda restam em mistério, mas, por algum motivo, o compositor brasileiro Leopoldo Miguéz, que estava programado para reger a récita, não subiu ao pódio naquela noite de 30 de junho. Algumas versões dizem que os músicos se rebelaram contra ele, outras dizem que foi Miguéz quem se recusou a reger por conta de uma briga com o empresário da companhia, Claudio Rossi. Há ainda a versão de um motim dos músicos contra o empresário, no qual Miguéz foi pego como bode expiatório. Em todo caso, o fato é que o regente de coro não se sentiu seguro para liderar a récita e, por sugestão dos próprios músicos, optou-se por Toscanini, que havia ensaiado a companhia durante a longa viagem pelo Atlântico.
Uma vez no fosso (no bom sentido da expressão), Toscanini dispensou a partitura e regeu, de cor, toda a longa e complexa ópera de Verdi. O feito do jovem músico, então com apenas 19 anos, logo virou notícia e marcou presença mundo afora. Ao retornar à Europa, não tardou para que Toscanini abandonasse o arco do violoncelo e adotasse a batuta como veículo de expressão musical.
Ao iniciar sua carreira como regente profissional, Toscanini abria também uma nova era da história da música, na qual, junto ao grande público, a figura do compositor passaria a ser eclipsada pela do regente. Detentor de uma personalidade difícil, Toscanini fazia dos ensaios verdadeiras seções de tortura psicológica para seus subordinados. De certa forma, ele foi o pioneiro moderno da ideia do “rigor extremo” na regência – cada ordem, gesto ou mera intenção que não fosse prontamente obedecida (ou mesmo adivinhada) era imediatamente e violentamente rechaçada. No pódio, defendia a literal interpretação do texto da partitura, apesar de frequentemente não levar ao pé da letra o que os compositores anotavam. O mais famoso caso ocorreu com o Bolero de Ravel, peça que regia duas vezes mais rápido que o indicado na partitura, sob a alegação de que “era a única maneira de salvar a obra”.
Polêmicas à parte, Toscanini soube se impor como um intérprete singular, tendo ocupado a direção de importantes casas de ópera, tais como o La Scala, o Metropolitan de Nova York e o Colón de Buenos Aires, instituições que tiveram temporadas memoráveis sob seu regime. Nesses períodos também trabalhou com as maiores vozes, tais como Caruso, Scotti, Farrar, Destinn e Martinelli. Mais tarde, como regente da Orquestra da NBC (grupo criado especialmente para ele), teve sua fama catapultada pelas difusões em rádio e TV, além de ter sido o regente pioneiro nos primórdios da gravação comercial.
A carreira de Toscanini se desenvolveu paralelamente à ascensão do movimento nazifascista que tomou de assalto a Alemanha e a Itália. Apesar de na primeira hora ter se filiado ao partido fascista italiano, logo Toscanini passou não só a negá-lo, como também a confrontá-lo diretamente.
Foram inúmeras as situações em que deu declarações públicas contra Benito Mussolini, líder supremo dessa sandice na Itália, tendo também se recusado a tocar a Giovinezza, o hino fascista, em diversas situações, inclusive em uma récita de Turandot que contava com a presença do Duce na plateia. Primeiro não alemão a pisar em Bayreuth nos famosos festivais dedicados a Wagner, Toscanini abandonou o evento quando Hitler vetou a participação de judeus nessas produções. E fez mais: refugiado na Suíça, fundou anos antes do surgimento do Estado de Israel uma orquestra integrada por músicos judeus.
Há quem diga que o heroísmo político de Toscanini era menos por ideais morais e humanitários e mais por egoísmo e orgulho próprio de quem não tolerava tomar ordens de quem quer que fosse. Mais que um maestro, Toscanini terminou seus dias em Nova York, em 1957, já consolidado como verdadeiro mito – imitado, refutado e admirado por várias gerações de regentes desde então.
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