Texto de João Luiz Sampaio na Revista CONCERTO de dezembro de 2014
Quando, na narrativa da história da música do século XX, o conceito de progresso ganha uma importância exagerada, muitas obras acabam excluídas dos registros por não terem nada de novo a dizer. A constatação é do jornalista Alex Ross, no livro O resto é ruído. Para ele, essas peças, não raro, são justamente aquelas que conquistaram um público mais amplo – e, por conta disso, acabaram-se formando dois repertórios distintos no período: um intelectual e outro popular. Exemplo bem-acabado do último grupo é a cantata Carmina Burana, de Carl Orff, uma das mais executadas obras entre as escritas no século XX, dona de uma popularidade nem sempre perdoada pelo establishment musical do período.
Foi às vésperas de completar 40 anos que Carl Orff teve seu primeiro contato com uma edição dos anos 1870 de Carmina Burana, coletânea de poemas e textos dramáticos dos séculos XI e XII, a maior parte escrita por jovens clérigos que, com eles, satirizavam alguns preceitos ligados às doutrinas da Igreja Católica. Ajudado por Michel Hofmann, aluno de direito e estudioso do latim e do grego, o compositor selecionou 24 trechos do livro. A seleção contemplou temas dos mais variados, como a superficialidade da sorte e da riqueza, a natureza efêmera da vida, a primavera, os desejos sexuais, os riscos da bebida e do jogo, e assim por diante.
Inspirado por essas passagens, Orff resolveu escrever o que chamou de uma cantata cênica, para grande orquestra, coro, tenor, soprano e barítono solistas. Do ponto de vista musical, a base da obra é a investigação rítmica – o que, para alguns estudiosos, resulta do impacto provocado pela audição de Les noces, de Igor Stravinsky, com quem o compositor aprendera também lições de orquestração. Já o estilo de canto oscila entre passagens de enorme dificuldade técnica e outras que se assemelham à declamação. Os detratores de Orff, por sua vez, chamariam atenção – e alguns o fazem ainda hoje – para a falta de ousadia na construção harmônica da obra.
Empolgado com a estreia da peça em Frankfurt, em junho de 1937, Orff escreveria a seu editor dizendo que todas as suas composições anteriores poderiam ser destruídas. “Minha obra completa começa apenas agora.” O entusiasmo era compreensível – Carmina Burana foi um sucesso de público e, desde então, seria interpretada regularmente mundo afora, celebrada por seu estilo direto e envolvente – e criticada, por essa mesma razão, por autores como o próprio Ross, que, anos antes de lançar O resto é ruído, escreveu no New York Times que o fato de a obra “ter aparecido em centenas de filmes e comerciais de televisão é prova de que ela não carrega nenhuma mensagem diabólica, ou melhor, de que não carrega mensagem alguma”.
Outro aspecto negativo que cercou Carmina Burana foi sua utilização pelo nazismo. Ao longo da Segunda Guerra, a obra acabou sendo incorporada como hino à propaganda cultural do Terceiro Reich, e uma das publicações do governo (o Völkischer Beobachter) chegou a classificá-la como emblema da “cultura jovem”. Essa apropriação acabou fortalecendo os julgamentos a respeito da postura dúbia do compositor no período – ele nunca se filiou ao partido, mas também nunca se opôs abertamente ao regime nazista. De qualquer forma, análises como essa parecem mais preocupadas em anotar o que a obra deveria ser e não aquilo que ela de fato é. E acabaram por deixar de lado aspectos importantes – entre eles, o senso estrutural com que Orff adapta os textos medievais, falando de diversos temas sem perder de vista um enfoque mais amplo e bastante presente na época do autor: o caráter efêmero da esperança, representada no grande coral O fortuna, que abre e encerra a peça.
Além de compositor, Orff foi também um importante educador musical. Idealizou o Schulwerk, método de ensino para crianças que vê a música como fruto do indivíduo, que deve ter contato com ela por meio de exercícios que envolvem canto, dança, jogos e teatro, tratando música, discurso e movimento como algo integrado e formando o que ele chamou de música elemental. Mas o sucesso de Carmina Burana acabaria por eclipsar esse aspecto de sua trajetória, e o mesmo aconteceria com suas outras obras. Assim, se, como o próprio autor diria, a cantata foi um divisor de águas em sua carreira, tornou-se também rótulo da qual ainda não conseguiu se libertar.
É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.