Acervo CONCERTO: Entrevista com Miguel Proença

por Redação CONCERTO 23/08/2025

Texto de Leonardo Martinelli publicado na edição de maio de 2006 da Revista CONCERTO.

Natural da pequena Quaraí, o pianista gaúcho Miguel Proença notabilizou-se no cenário musical ao abordar com versatilidade tanto o repertório internacional como o nacional, em épocas nas quais a música clássica brasileira era praticamente inacessível ao grande público. Dono de uma carreira internacional – que recentemente lhe assegurou um retrato na restrita “sala da fama” na fábrica hamburguesa dos pianos Steinway & Sons –, Proença é também o detentor de uma ampla discografia, na qual destaca-se o monumental “Piano Brasileiro”, uma coletânea de 10 CDs lançada no ano passado, integralmente dedicada a compositores brasileiros. O projeto em torno do piano brasileiro inclui também uma turnê, que em 2005 percorreu 13 cidades nos mais diferentes Estados, patrocinada pelo Sesi Nacional. Tendo recentemente encerrado a primeira parte da turnê “Piano Brasil II” e lançado o álbum “Tango” (junto com a atriz-cantora Bibi Ferreira), Proença inicia neste mês, aos 67 anos, a segunda jornada deste tour de force, que passará por diferentes cidades das regiões Sul, Sudeste e Nordeste do Brasil. É com alegria e vitalidade que Proença concedeu à Revista CONCERTO a seguinte entrevista. 

Como é a experiência de tocar pelo Brasil, em especial, ao se apresentar fora do eixo Rio-São Paulo? 

Tocar em cidades do interior é algo realmente diferente de tocar nas grandes cidades. Como não faço concessões em relação ao repertório que escolho – toco no interior o mesmo programa que toco num grande centro urbano –, por vezes o público reage com certa perplexidade ao que ouve. Entretanto, isto não quer dizer que o público não entenda o repertório. Pelo contrário, após os concertos recebo várias pessoas que tecem comentários interessantes ou mesmo surpreendentes. Uma vez, em Caruaru, um menino de 12 anos chegou a mim e disse: “Moço, eu também quero ser crente.” Achei maravilhoso, porque naquele momento ele havia escolhido sua “religião”, isto é, a música. Eu nasci no interior e entendo este tipo de recepção, de carência. Ao mesmo tempo, é preciso ficar claro que a turnê não se limita às apresentações, pois aproveito esta ocasião para ouvir jovens talentos, fazer parcerias e realizar palestras. 

Qual foi a sensação de realizar um recital em sua cidade natal? 

Foi uma maravilha, um momento muito especial, carregado de forte emoção. É uma ocasião onde você sabe que está tocando onde tudo começou, que suas raízes estão lá. Muitas pessoas foram pela primeira vez a um concerto apenas para me ver, e acabei reencontrando diversos colegas de infância que há tempos não via. Para você ter uma ideia, minha primeira professora de piano estava lá. Por conta disto, até mudei o repertório e inseri algumas peças que eu havia estudado com ela. É algo completamente diferente de estar tocando no Cultura Artística ou na Cecília Meireles. 

Ao contrário de muitos colegas músicos, o pianista se dedica a um instrumento não-portátil. Como é lidar com tamanha diversidade de instrumentos e condições numa turnê como esta? 

De fato é um problema sério. Nesta turnê, por exemplo, viajo com um afinador, que no dia anterior ao concerto desmonta, regula e afina o piano, por vezes fazendo um trabalho realmente inacreditável. É muito raro encontrar fora das grandes cidades um piano em boas condições. Mas não é questão de se falar mal de uma cidade ou de um teatro, mas sim de batalhar pela melhoria das condições. Eu já fiz várias campanhas em prol da compra de bons pianos. Mas frequentemente bate uma saudade de algum dos Steinways que tenho em casa... 

Exceto por uma obra de Alberto Nepomuceno, o repertório da turnê deste ano é constituído por obras de grandes compositores europeus, como Debussy e Chopin. O repertório internacional é ainda melhor recebido que o nacional?

Sim, não posso negar que há uma grande receptividade em torno dos “grandes clássicos”. Não que a música nacional seja menosprezada, mas não há dúvida de que existe uma predileção. Entretanto, sempre fui um batalhador quando o assunto é divulgar a música brasileira. Certa fez o pianista Jacques Klein chegou a brincar comigo, dizendo: “Miguel, como você gosta de Xangô!” (risos). Agora todo mundo corre atrás do repertório brasileiro, mas eu já faço isto desde há muito tempo. 

Sua coletânea “Piano Brasileiro” reflete esse extenso contato com repertório pianístico brasileiro. Como analisa o repertório nacional à luz de sua experiência com o repertório europeu? 

Creio que ele é perfeitamente demarcado, e podemos encontrar ao mesmo tempo paralelos com a música europeia – até porque todos os compositores têm formação europeia – e características próprias. Por exemplo, em Nepomuceno sentimos uma forte presença da música de Edvard Grieg, com quem ele inclusive teve aulas. Mas, por outro lado, ele foi um dos pioneiros ao utilizar ritmos nacionais, tal como na quarta peça do opus 13, “A Galhofeira”. 

Ao longo de sua carreira você realizou muita música de câmara com renomados instrumentistas, como o violinista Salvatore Accardo e o flautista Jean-Pierre Rampal. Na sua opinião, quais as principais diferenças entre a preparação camerística e a solista? 

Acho que não existe diferença de um trabalho para o outro. O trabalho de camerista faz parte do trabalho do solista. Não há nada em específico a ser aprendido. É preciso, sim, ter ouvido, intuição. É preciso ouvir o resultado do instrumento que se está acompanhando e envolvê-lo! Nesse quesito a melhor orientação que pude ter foi com o violoncelista norte-americano Leonard Rose, um professor fantástico, que me disse poucas palavras, mas que ficaram marcadas para sempre em mim. De resto é continuar a fazer o trabalho pianístico em si, a procura dos timbres, do colorido, em busca de uma linguagem própria. 

Com tamanho repertório, existe alguma peça que queira tocar e ainda não tocou? 

Sim, ainda não tive tempo de estudar o Concerto nº 3 de Rachmaninov. 

Nos últimos anos, você integrou o corpo de jurados de diversos concursos internacionais de piano. Qual é o seu processo para escolher o melhor músico numa ocasião como esta? 

A questão dos concursos é um problema muito sério no momento. Ultimamente, os concorrentes estão muito fixados na perfeição técnica e na velocidade. Até certo ponto, eu concordo com isso. Mas tem sido muito comum certas peças ficarem completamente descaracterizadas em virtude de uma execução pirotecnizada. O cerne de um talento artístico vai muito além da técnica e do virtuosismo. A maioria dos candidatos são cansativos, já que eles não têm mais o que dizer na sua suposta perfeição técnica. Além disso, existem os problemas políticos. Infelizmente, muitos jurados têm alunos nos concursos e fazem de tudo para que eles sejam favorecidos. Para falar a verdade, não gosto que os concursos sejam o principal meio de se projetar jovens músicos. Essas maratonas são muito frustrantes e nem sempre conseguem aproveitar os verdadeiros talentos. 

Além do trabalho como pianista, você desenvolve a direção musical do Teatro do Sesi no Rio Grande do Sul. Que critérios utiliza na elaboração de uma temporada? 

Monto a programação guiado pela qualidade e pela oferta. E também meço a “febre” de Porto Alegre, tento diagnosticar o que a população quer ouvir. Mas sempre procuro fazer uma programação diversificada, que alterna nomes famosos – como Nelson Freire e Martha Argerich – com músicos desconhecidos. E temos garantido um bom público ao longo da temporada. 

Obrigado pela entrevista. 

O pianista Miguel Proença em foto de 2006 (Divulgação, Beti Niemeyer)
O pianista Miguel Proença em foto de 2006 (Divulgação, Beti Niemeyer)

 

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