Texto de Lauro Machado Coelho publicado na edição de abril de 2008 da Revista CONCERTO
Verdi tem 74 anos quando estreia o Otello. Terá 80 ao compor a sua última ópera, Falstaff. Apesar das dúvidas, ligadas à idade, quando Arrlgo Boito manda-lhe o libreto, em julho de 1889, ele se apaixona de tal forma pelo poema que começa a trabalhar com grande entusiasmo, e a ópera fica pronta em setembro de 1892. Como de hábito, a escolha dos intérpretes e a supervisão da montagem foram rigorosíssimas, e a ópera foi um de seus maiores sucessos.
É enorme, no Falstaff, a complexidade das cenas de conjunto, de um refinamento extraordinário. Exemplo disso é o noneto do fim do ato I, em que os homens cantam alia breve, Ou seja, tão rápido que é como se um compasso nominalmente de quatro tempos tivesse apenas dois, e as mulheres, num ritmo de 6/8. A economia de recursos do estilo parlando de canto dá ao Falstaff um nítido caráter de conversação. Chega ao apogeu a concepção verdiana da parola scenica, estilo multo espontâneo de declamação que vem se formando a partir do Rigoletto (a cena com Sparafucile), para ter pontos altos no Don Cario (Felipe/Inquisidor) e no Otello (a cena com lago).
Ao mesmo tempo que fecha um grande ciclo da ópera bufa italiana, Falstaff abre uma porta para a ópera cômica do século XX
A escrita vocal é de leveza "mozartlana". As sequências de conversação das três comadres; a visita de miss Quickly a Falstaff; a cena em que Ford vai pedir a Sir John que seduza sua própria esposa ficam como grandes modelos para o futuro. As cenas de amor de Fenton com Nanetta são de uma elegância Insuperável. A escrita instrumental tem refinado caráter camerístico. Embora muito grande, a orquestra se fragmenta constantemente em pequenos conjuntos de Instrumentos, num acompanhamento cheio de filigranas rebuscadas, que formam uma tapeçaria sonora de efeitos cintilantes (por exemplo, o ruído das moedas que ouvimos na orquestra quando Ford fala da bolsa que dará a Falstaff se ele vencer o bastião da fidelidade de Alice). O uso de técnicas comuns no melodrama protobarroco, como o micro-arioso (a melodia brevíssima de "e il viso tuo su me risplenderà", que é de uma beleza de tirar o fôlego), ou o descritivismo verbal (a coloratura usada por Ford ao pronunciar a palavra "madrigal''), mostram Verdi atualizando, com absoluta desenvoltura, veneráveis procedimentos que remontam aos primórdios setecentistas, de que ele tinha conhecimento surpreendentemente sólido para a sua época.
Falstaff é a síntese perfeita de toda a tradição cômica italiana que, partindo da Commedia dell'Arte renascentista, passa pela ópera bufa barroca (os intermezzi) e clássica (Cimarosa, Paisiello ), para desaguar no modelo rossiniano, seguido também por Donizetti. Por um lado, as personagens ainda estão vinculadas aos arquétipos da Commedia dell'Arte: sir John é o "pancione" glutão, presunçoso e ridículo; Ford, o marido enganado; Alice, a esposa fiel, mas coquete, injustamente suspeita de adultério, e assim por diante. Mas, ao mesmo tempo, cada uma dessas personagens transcende sua condição de estereótipo e adquire a dimensão complexa de ser humano, inclusive com um lado sofrido e desiludido: as reflexões desencantadas de Falstaff no "Monólogo da Honra" ou em "Mondo ladro, mondo rubaldo"; o desabafo de Ford em "É sogno o realtà?" fundem sério e cômico, inserindo reflexões amargas dentro de situações tipicamente farsescas (a capacidade de refletir a vida em toda a sua contraditória diversidade, fazendo a lágrima sair de dentro do riso e vice-versa, foi o que sempre fez a glória da comédia italiana, tanto no teatro quanto no cinema).
Nesse sentido, ao mesmo tempo que fecha um grande ciclo da ópera bufa italiana, Falstaff abre uma porta para a ópera cômica do século XX.
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