Texto de Lauro Machado Coelho publicado na CONCERTO de dezembro de 1997
A Revolução Francesa, durante a qual foram constantes as perseguições políticas, inspirou um gênero que se tornou muito popular no início do século XIX: a "ópera de resgate", em que uma pessoa fiel ao perseguido ajuda-o a fugir ou a sair do cativeiro. Os temas comuns à opéra de sauvetage – amor, solidariedade, defesa do direito à liberdade, herdados do ideário iluminista – fascinaram o autor da Eroica. Por isso, Beethoven, que, em 1803, comprometera-se a compor uma ópera nova para o Theater an der Wien, inspirou-se em Léonore ou L'Amour Conjugal, o libreto que Jean Nicolas Bouilly escrevera em 1789 para Pierre Gaveaux; e que também foi musicado por Ferdinand Paer (1804) e Simon Mayr (1805). O episódio que esse libreto conta, da mulher que se disfarça de homem para localizar o marido na prisão onde ele está detido, ocorrera realmente, na França, durante o Terror.
A gravação recente feita por John Eliot Gardiner demonstra ser infundada a acusação ele que a Leonore original, em três atos, foi um fracasso ao estrear, em 20 de novembro de 1805, por ser demasiado longa e difusa. Na realidade, Viena estava sob ocupação das tropas napoleônicas, a maioria dos admiradores de Beethoven tinha fugido da cidade e o público que assistiu à primeira récita não estava em condições de apreciá-la. Seja como for, Beethoven convenceu-se a apresentar uma versão definitiva em 1814: Wilhelmine Schriider-Devrient, no papel-título, fez dela um grande sucesso em 23 de maio.
Fidelio é um singspiel, isto é, o tipo de ópera alemã com diálogos falados entre os números cantados, decalcado no modelo do opéra-comique francês. A mistura de comédia doméstica (o namoro de Jaquino e Marzellina) e melodrama heroico (a luta de Fidelio contra Don Pizarro) inspira-se nos opéras de sauvetage de Cherubini, que Beethoven admirava muito. As condições muito peculiares de composição de uma ópera cuja gênese estendeu-se por mais de dez anos fazem dela a típica obra de transição, tanto na obra de Beethoven quanto na História da Ópera.
O dueto entre Marzellina e Jaquino, com que a ópera se inicia, trai evidente influência mozartiana. O final – "Wer ein holdes Weib errungen", um entusiástico hino à fidelidade conjugal – já pertence, por sua construção e sonoridades, ao autor do último movimento da Nona Sinfonia. E a grande ária de Leonora, "Komm, Hoflnung", cheia dos rompantes românticos típicos de 1805, é precedida por um recitativo, "Abscheulicher!", acrescentado em 1822, que é obra do Beethoven maduro. E se Fidelio, Florestan e Don Pizarro são personagens românticas típicas, Marzellina, Jaquino e Rocco ainda pertencem ao universo operístico cio fim do século XIX.
Mesmo quando certas passagens do texto são um tanto banais, a qualidade da música de Beethoven as transfigura. Com isso, essa ópera sobre o amor e a liberdade está cheia de momentos de irretocável perfeição: o quarteto "Mir ist so wunderbar", com uma daquelas melodias mágicas típicas de Beethoven; o coral dos prisioneiros, "O welche Lust", com que se encerra o primeiro ato; a ária de Florestan, com que se inicia o segundo ato; ou o extasiado dueto, "O namenlose Freude", em que Florestan e Leonora celebram a alegria do reencontro, e da liberdade que o marido deve à fidelidade da mulher.
Clique aqui para ler outros textos do acervo de três décadas da Revista CONCERTO

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.