Texto de Lauro Machado Coelho publicado na Revista CONCERTO de março de 1998
Nas nove sinfonias que escreveu entre 1885 e 1912, Gustav Mahler ampliou as formas desse gênero orquestral, conferindo-lhe um grau extraordinário ele complexidade. Judeu tcheco naturalizado austríaco, e convertido ao catolicismo para poder fazer carreira no circuito oficial da música de seu tempo, Mahler foi um dos maiores regentes da virada do século. Utilizou com grande virtuosismo seu conhecimento das múltiplas possibilidades da orquestra nos jogos de colorido de imensos efetivos instrumentais.
Dentre os verdadeiros afrescos orquestrais que compôs, um dos mais brilhantes e acessíveis é a Sinfonia nº 2 em dó menor. E, no entanto, esta foi uma de suas obras de mais longa gestação. Em janeiro de 1888, Mahler compôs um poema sinfônico intitulado Totenfeier (Rituais Funerários). Mais tarde, porém, deu-se conta de que ele era o ponto de partida para uma estrutura orquestral mais ampla. Durante as férias de verão de 1893, compôs os três movimentos seguintes do que viria a ser a sua segunda sinfonia – cuja estreia parcial foi regida em Berlim por Richard Strauss.
Mas, ao retornar a Hamburgo onde, na época, era regente da Ópera, Mahler sentia que o arco musical ainda estava incompleto, embora não soubesse como terminá-lo. A resposta veio no início de 1894, durante o serviço fúnebre pelo pianista e regente Hans von Bülow. Quando o coro entoou as palavras da Ode à Ressurreição, de Klopstock, "Auferstehen wirst du, mein Staub, nach kurzer Ruh" (Hás de te erguer ele novo, meu pó, após breve repouso), Mahler percebeu ter encontrado o que queria.
Seu amigo J. Fõrster contava que, ao visitá-lo, aquela noite, já o encontrara absorto na composição do movimento final da nº 2, cuja estreia ele próprio regeu em Berlim, em 1895. E o que, a princípio, parecia uma obra pessimista e desiludida, converteu-se na afirmação radiosa da crença no poder de ressurreição do espírito.
Nem mesmo Bruckner, em suas extensas sinfonias, ou Richard Strauss, em seus poemas sinfônicos – por exemplo, Morte e Transfiguração, de tema análogo, que é de 1890 – tinham mobilizado, antes, efetivos tão grandes: a nº 2 é escrita para soprano e mezzo, coro e uma orquestra em que, além das cordas usuais, há quatro de cada uma das madeiras, dez trompas, oito trompetes, cinco tubas, órgão e um enorme conjunto de percussão.
O contraste entre as ideias, ora sombrias, ora nostálgicas, do primeiro movimento e o lirismo do segundo, um encantador minueto, de orquestração transparente; a ironia do scherzo, em que Mahler reutiliza o tema de sua canção Santo Antônio pregando aos peixes (na qual os animais, depois de terem ouvido as palavras do santo, viram-lhe as costas, vão embora e continuam a se comportar exatamente da mesma maneira); e a doce canção do quarto movimento – Urlicht (Luz original), tirada da coletânea de poemas folclóricos Des Knaben Wunderhorn (A trompa mágica da infância) – preparam o caminho para a grande realização que é o movimento final. Coroado pelo poema de Klopstock, ele evoca o Juízo Final não como um quadro apocalíptico de medo e castigo e, sim, como a visão da compaixão divina que a todos abarca com o seu amor infindável.
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