Texto de Camila Fresca publicado na edição de novembro de 2013 da Revista CONCERTO
Poucos compositores na história da música tiveram uma carreira tão longeva, prolífica e, por assim dizer, feliz como teve Haydn. Compositor símbolo do Classicismo, ao lado de Mozart, Haydn foi respeitado e admirado quase unanimemente em seu tempo. A imensa quantidade de obras que deixou ilustra não apenas o compositor incansável e de grande imaginação musical que ele foi, mas também a organização da música em seu tempo: Haydn foi o último grande beneficiário de um sistema de patronagem que vigorava entre a nobreza europeia desde a Renascença.
Joseph Haydn nasceu em 1732, em uma família humilde de Rohrau, vila austríaca próxima à fronteira com a Hungria. Foi o segundo de doze filhos do fabricante de carroças Mathias Haydn e da cozinheira Anna Maria Koller. Desses, apenas seis chegaram à idade adulta, e dois se tornaram músicos: Johann Michael Haydn, excelente compositor, e Johann Evangelist, tenor. Haydn recebeu as primeiras lições de música quando foi viver sob custódia de um tio, aos 4 anos de idade. Até 1748, fez parte do coro infantil da Catedral de Santo Estevão em Viena. Sabe-se pouco sobre sua vida nesse período, mas entre as informações disponíveis está a de que instalou-se em Viena em 1748, vivendo no sótão da casa em que residia o poeta e libretista Metastasio. Este o apresentou ao compositor Porpora, de quem Haydn tornou-se auxiliar e aluno. O jovem completou sua formação por meio de “Gradus ad Parnassum”, famoso tratado do compositor barroco Johann Joseph Fux.
Haydn já havia escrito as primeiras sonatas, quartetos de cordas e pequenas missas quando, em 1761, foi contratado como segundo mestre de capela do príncipe Paul Anton Esterházy, um dos mais ricos senhores da Hungria. Aos 29 anos, Haydn assinou um contrato que se tornaria célebre como retrato da condição do músico no Antigo Regime. Além de detalhar que, na frente do príncipe, ele deveria se apresentar “impecavelmente de meias brancas, linho branco, empoado e com rabo de cavalo ou aparência semelhante”, o documento estabelecia a obrigação de compor as peças que o príncipe ordenasse, as quais seriam de uso exclusivo de “Sua Alteza Sereníssima”, não podendo ser copiadas. Haydn também não poderia compor para outra pessoa “sem o conhecimento e a generosa permissão de Sua Alteza”. Tratava-se mais de uma espécie de laço feudal que de um contrato profissional, o que ficava patente nos detalhes de remuneração, que incluía pagamentos com produtos como vinho, lenha, banha, trigo e carne. O compositor permaneceria ligado à família Esterházy até a morte, servindo a quatro gerações de príncipes. Paul Anton faleceu em 1762 e foi sucedido por seu irmão Nicolas, a quem Haydn serviu por 28 anos.
Fora de Viena, a residência principal dos Esterhazy era o castelo de Eisenstadt, substituído na época de Nicolas por um palácio ainda mais suntuoso, o Eszterháza, a partir de 1766. Durante mais de vinte anos sucedeu-se uma intensa atividade cultural em Eszterháza, com concertos, óperas e peças teatrais, além de grandes festas e espetáculos de fogos de artifício.
Desde os primeiros anos de serviço para os Esterházy, Haydn se destacou como compositor, sobretudo por suas sinfonias. Já então, ele se revela um mestre do gênero, acabando por fixar a forma que ainda hoje reconhecemos: o primeiro movimento rápido, o segundo lento, o terceiro no estilo dançante e o quarto rápido. Em Eszterháza, Haydn coordenava um numeroso grupo de cantores e instrumentistas e frequentemente tinha de intermediar situações como disputas, petições e requerimentos. Ficou famoso um episódio que revelou seu espírito conciliador e, ao mesmo tempo, seu senso de humor: em novembro de 1772, ele estreou para o príncipe a Sinfonia nº 45, “Les adieux”, na qual os músicos vão se retirando do palco, um a um, no último movimento. A obra teria sido escrita dessa forma para protestar contra uma longa temporada em Eszterháza, durante a qual os músicos estavam privados de suas famílias.
Haydn queixava-se de viver isolado em Eszterháza, mas reconhecia que a situação tinha suas vantagens: “À frente de uma orquestra, eu podia me permitir todas as ousadias. Excluído do mundo, eu não tinha quem me importunasse e, assim, não tive outro jeito senão tornar-me original”. Mas sua condição sofreria uma reviravolta em 1779, quando um novo contrato substituiu o anterior. Além de ter sido retirada grande parte das cláusulas mais humilhantes, Haydn passava a ser livre para escrever e editar músicas; assim, logo estabeleceu contrato com um editor vienense. Mas a verdade é que suas obras já circulavam por Paris e Londres muito antes disso, na maioria das vezes sem seu conhecimento, em cópias manuscritas.
Durante seus últimos anos em Eszterháza, Haydn coordenava os serviços musicais, mas pouco compôs para o príncipe, que estava encantado com a ópera italiana. A quase totalidade de sua produção era destinada a encomendas vindas de Viena, Paris, Londres e Madri. Assim nasceram as seis sinfonias conhecidas como “parisienses” (nºs 82 a 87) e As sete últimas palavras de Cristo na cruz, solicitadas por um cônego de Cádis.
Quando o príncipe Nicolas morreu, em 1790, o isolamento de Haydn finalmente teve fim. O novo príncipe, filho de Paul Anton, não se interessava por música. Com sua pensão garantida, pois não deixou de ser funcionário dos Esterházy, Haydn pôde aceitar o convite de seguir a Londres para escrever uma série de obras e reger concertos. Ele já era figura adorada por lá e fez duas estadias bastante frutíferas: entre janeiro de 1791 e julho de 1792 e, em seguida, de fevereiro de 1794 a agosto de 1795. Após trinta anos de vida reclusa, Haydn era recebido como celebridade e vivia uma intensa agenda social, além de receber prêmios e homenagens, como o título de doutor honoris causa da Universidade de Oxford. Da primeira estadia em Londres nasceram a ópera Orfeu e Eurídice e as seis primeiras “Sinfonias de Londres” (nºs 93 a 98). Quando retornou à Áustria, Haydn foi apresentado ao jovem Beethoven, quem encontraria novamente em Viena, a partir de novembro de 1792, para dar-lhe aulas durante um ano. De sua segunda estadia em Londres são as outras seis sinfonias londrinas (nºs 99 a 104), suas últimas composições do gênero – a coleção dessas obras é considerada sua obra-prima.
A essa altura, Haydn era figura central da sociedade vienense e era considerado o maior compositor vivo – posto que Beethoven assumiu em 1803, quando Haydn deixou de compor. A partir de 1796, Haydn passou a servir o quarto príncipe da família Esterházy: Nicolas II, que resolveu reconstruir a capela de seu avô Nicolas. Haydn retomou a direção da capela, porém com obrigações leves. Entre 1796 e 1802, teve de escrever apenas uma missa por ano, para celebrar o aniversário da esposa de seu patrão.
Quando, já em idade avançada, praticamente não saía mais de sua casa em Viena, esta se tornou local de peregrinação. Sua última aparição pública deu-se em 27 de março de 1808, ao acompanhar a execução de seu oratório A criação, dirigido por Antonio Salieri. À saída do concerto, Beethoven teria beijado suas mãos. Haydn morreu em casa em 31 de maio de 1809, aos 77 anos, poucos dias depois da segunda ocupação de Viena por Napoleão.
Além de mais de uma centena de sinfonias, Haydn contribuiu de modo fundamental ao quarteto de cordas (escreveu 84 deles) e à sonata para teclado (sessenta no total), ajudando a fixar suas formas musicais. Ele deixou ainda duas dezenas de óperas, 14 missas, 31 trios com piano, três oratórios, quase trinta concertos para instrumentos como teclado, violino, violoncelo e contrabaixo e uma quantidade imensa de obras vocais e música instrumental variada. Estima-se que tenha produzido, no total, 340 horas de música – mais que Bach, Händel, Mozart ou Beethoven.
Além de admirado por seu talento como compositor, Haydn era reconhecido por sua inteligência, seu senso de humor, sua generosidade e sua elegância. Para atestar a unanimidade que foi em sua época, basta dizer que era respeitado pelos colegas Mozart e Beethoven, com os quais, aliás, formou a tríade conhecida como Primeira Escola de Viena.
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