Com impacto econômico de R$ 1,1 bilhão em 2023, gênero se consolida como mercado de trabalho para bailarinos e coreógrafos
Para que haja teatro musical, é preciso haver interpretação, canto e dança. Por isso, quando essa linguagem começou a tomar conta dos palcos paulistanos a partir do início do século XXI, rapidamente multiplicou as oportunidades de inserção profissional para bailarinos e coreógrafos.
Isso está comprovado em dados levantados pela 2ª edição do estudo “Impacto econômico do teatro musical na cidade de São Paulo”, realizado pela Fundação Getúlio Vargas sob encomenda da Sociedade Brasileira de Teatro Musical. Apenas em 2023, o setor gerou mais de 13 mil postos de trabalho, gerando um impacto econômico de R$ 1,1 bilhão.
Um dos pioneiros dessa cena é Alonso Barros. Em 1983, ele integrou o elenco da primeira montagem nacional de “Chorus Line”. O clássico da Broadway, que fala justamente sobre artistas da dança em busca de seu lugar, volta em cartaz a partir de setembro com direção e coreografia de Bárbara Guerra e foi um importante momento formativo para ele e colegas como Claudia Raia e Totia Meireles.
“Naquela época, não havia escola de musical no Brasil. A gente cantava no banheiro”, lembra Barros, que até então tinha sua formação baseada exclusivamente na dança. De início, atuou como swing – nome dado às pessoas responsáveis por fazer substituições de diferentes papéis. Como nem sempre subia ao palco, o artista aproveitava para verificar tudo com atenção, observando os meandros de aspectos como iluminação, cenografia e direção.
“Tenho muito carinho por esse espetáculo. Ele foi a melhor escola que pude ter. Todos nós saímos de lá com uma lição. Aprendi na marra mesmo.” Essa vivência o credenciou a estar na linha de frente das produções contemporâneas como um dos mais requisitados coreógrafos de sua geração. É ele quem assina a movimentação de uma nova montagem de “Hair”, atualmente em cartaz no Rio de Janeiro e com estreia paulista em outubro.

A produção é cara ao artista. Nos anos 1980, Barros participou de uma versão do musical que substituía a estética hippie original pelo punk. Enquanto trabalhava na Europa, entre os anos 1990 e 2000, também teve a oportunidade de coreografar outras duas leituras da mesma obra. De volta ao Brasil, se juntou à dupla Charles Möeller e Claudio Botelho para revivê-la em 2010. Quinze anos depois, topou repetir a dose com os mesmos diretores, carregando o desafio de apresentar uma nova abordagem para uma peça já muito explorada por si. “Não gostaria nunca de fazer uma cópia do que já fiz. A concepção deste ‘Hair’ é totalmente nova, ambientada em um teatro abandonado. Isso abre muitas portas para mim, pois pude usar elementos diferentes não só do ponto de vista coreográfico, mas também cênico.”
Um dos desafios para quem pensa a dança por trás dos musicais é explorar o elenco em toda a sua potencialidade. Nem todo mundo é especialista em balé ou jazz, e isso precisa ser considerado na definição dos movimentos. “Você trabalha com as pessoas de acordo com o que elas podem dar. Tento tirar o melhor de cada um dentro do meu conceito”, afirma ele, que neste momento também prepara a coreografia da paródia “Titaníque” e do musical “Mudança de hábito”, ambos agendados para outubro.
Esse cuidado em entender as capacidades de cada um foi algo bastante presente no processo de montagem da estreia de Carlinhos de Jesus como coreógrafo de teatro musical. Coube a ele a direção de movimento de “Chatô e os Diários Associados”, que acaba de encerrar sua temporada em São Paulo. “Durante a seleção, vi o que era possível fazer dentro do meu pensamento de dança de salão. Quando o corpo já vem pronto, surgem movimentos conhecidos. Quando não, você cria e busca outros movimentos, e o resultado fica muito próprio e visceral. Gosto desse desafio”, explica.

Para contar como Assis Chateaubriand se transformou em magnata da comunicação nacional ao longo do século 20, o artista se baseou em inspirações diversas: “Não puxei pernas de balé ou jazz. Queria que fosse algo bem brasileiro. Peguei movimentos básicos de frevo e trabalhamos em oficinas. Também teve momentos de baile, para os quais sugeri o bolero. Tudo precisava ter uma sutileza daquela época”.
Carlinhos ressalta ainda a importância da dança para a preparação do corpo mesmo em momentos não necessariamente dançados. Em uma cena que tematiza a opressão da ditadura brasileira nos anos 1960 e 1970, ele instigou nos atores um estado de tensão constante. “Fizemos um laboratório para buscar essa dramaticidade sem parecer algo patético. Procurei a carga emocional que o diretor [Tadeu Aguiar] queria colocar ali, com gestos mais expressivos, que passassem dor e apreensão.”
Essa preocupação está alinhada com a premissa básica de qualquer musical: a dança precisa ajudar a contar a história. Foi o que Rafa L manteve o tempo todo no radar em seu primeiro trabalho como coreógrafa, na superprodução de “Dreamgirls”, em cartaz em São Paulo. “Não se trata de um balé meu, mas de uma coreografia dentro de um espetáculo que já existe”, diz ela. A artista pôde reinterpretar os números criados originalmente por Michael Bennett para o musical da Broadway, que fala sobre a ascensão de um trio de cantoras negras nos Estados Unidos dos anos 1960. “Tive um compromisso com a estrutura e a linguagem dele, com elementos do soul e da dança popular afro-americana, mas entendi que essa era uma oportunidade artística de colocar minha opinião através da dança, então trouxe a cultura negra brasileira também.”

Em sua carreira como bailarina, Rafa chegou a integrar o Balé Folclórico da Bahia. Dessa influência surgiu a necessidade de ressaltar que coreografias de musicais podem beber de outras fontes para além de técnicas europeias e estadunidenses já tarimbadas. “Quis trazer a dança afro e valorizar essa influência. Meu trabalho foi traduzir esse sentimento para uma estética compreensível, e minha ousadia foi acreditar nesse sentir. Não tem nenhum movimento que eu não possa justificar.” Rafa é uma travesti preta e entende que sua presença no time criativo de uma grande produção musical tem um peso político considerável. “A dança me possibilitou acessar o teatro musical e crescer enquanto artista. É importante que oportunidades assim cheguem a mais pessoas. Todo mundo pode dançar e toda dança tem seu valor.”
ESCOLA
É com esse foco que a São Paulo Escola de Dança, equipamento público mantido pelo Governo do Estado de São Paulo, mantém cotas para seus cursos regulares de teatro musical. Entre as 40 vagas disponíveis, 20% são destinadas a pessoas negras, pardas e indígenas e 50% a quem vive em contexto de baixa renda. Quem passa no processo seletivo tem acesso gratuito a 1.600 horas de aulas teóricas e práticas ao longo de dois anos. A aposta é democratizar a profissionalização neste segmento, dado que os atributos exigidos pelo gênero – em canto, interpretação e dança – acabam encarecendo os custos de formação.
“Percebemos a potência do teatro musical para inserção no mercado de trabalho”, afirma Junior Oliveira, gerente educacional da escola. “A gente compreende que essa é uma das estéticas com formação menos acessível e buscamos atender a uma pluralidade de corpos.” Não à toa, esse é o curso mais procurado dali: a concorrência é de dez candidatos por vaga.
Criada em 2023, a iniciativa veio se somar a outras já atuantes em São Paulo, como o Estúdio Broadway, fundado em 2014 por Fernanda Chamma, e a escola TeenBroadway, que oferece cursos profissionalizantes e opera desde 1996 sob a direção de Maiza Tempesta. O investimento em formação tem ajudado jovens talentos a chegar mais preparados ao mercado.
No caso da São Paulo Escola de Dança, uma das ações tomadas pelo curso para dar mais oportunidades aos estudantes nesse sentido é a realização de módulos com participação de quem já atua no meio, tornando o processo de aprendizagem também um treinamento para audições. “Fazemos essa ponte para que eles se insiram o quanto antes no mercado. Um grupo se mudou para o Rio para participar do musical do Rock in Rio. E dentro do curso temos grupos e coletivos que começam a produzir suas próprias criações.”
As conexões entre teoria e prática são essenciais. Afinal, o único jeito de um artista amadurecer é em cena, como indica Alonso Barros: “A escola dá toda a informação, mas o que molda é o fazer. Ela dá a técnica, mas o palco é que dá a personalidade – e isso cada artista só pode construir por si mesmo”.
Como o próprio coreógrafo diz, a dança pela dança não significa muito no teatro musical. Mas é a singularidade conquistada pelo potencial expressivo do movimento que faz os artistas devotados a essa linguagem ganharem um espaço cada vez mais sólido nesse universo tão cheio de possibilidades.
PARA ASSISTIR
Hair, direção de Charles Möeller & Claudio Botelho e coreografia de Alonso Barros. Em cartaz até 31 de agosto no Teatro Riachuelo, no Rio.
Dreamgirls - em busca de um sonho, direção de Gustavo Barchilon e coreografia de Rafa L. Em cartaz até 30 de novembro no Teatro Santander, em São Paulo.
Chorus Line, direção e coreografia de Bárbara Guerra. Estreia 18 de setembro no Teatro Villa-Lobos, em São Paulo.
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