Bailarinos e grandes personagens

por Redação CONCERTO 20/07/2024

Por Liana Vasconcelos [Liana Vasconcelos é bailarina do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, doutora em Artes Cênicas pela Unirio, professora de História da Dança da Escola Estadual de Dança Maria Olenewa e da Pós-Graduação em Ensino de Dança Clássica.] 

Os personagens dos balés de repertório começam a fazer parte da vida dos bailarinos estudantes desde muito cedo. Seja quando vão pela primeira vez ao teatro assistir a um balé completo e sonham em um dia viver aquele protagonista, ou assistindo a vídeos dos seus bailarinos favoritos nas principais companhias de dança do mundo. Mais tarde, depois de um certo adiantamento técnico, começam a participar de festivais, concursos e espetáculos de final de ano de suas escolas, e vivenciam a experiência de dançar uma variação de repertório no palco, criando gosto pela magia, que é poder viver um grande personagem em cena, fato que os estimula muito a seguirem profissionalmente nesta carreira. 

Para este artigo foram entrevistados seis bailarinos brasileiros, de diferentes gerações e de companhias de dança para que contassem sobre a relação que têm com os personagens e seu processo de criação: Ana Botafogo (Primeira Bailarina do Theatro Municipal do Rio de Janeiro), Marcelo Misailidis (Primeiro Bailarino do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, diretor e encenador), Thamiris Prata (Solista da São Paulo Companhia de Dança), Yoshi Suzuki (Solista da São Paulo Companhia de Dança), Mel Oliveira (Primeira Bailarina do Ballet Nacional Sodre, no Uruguai) e Gustavo Carvalho (Bailarino do Ballett am Rhein, na Alemanha).

Alguns personagens se tornam especiais e marcantes na carreira de um bailarino. Para Ana Botafogo, uma destas foi Giselle, sua primeira protagonista. Ela dançou este balé criado por Jules Perrot (1810-1892) e Jean Coralli (1779-1854) ao longo de 30 anos, e a interpretação da personagem foi amadurecendo junto com ela. Ana conta que sua Giselle começou a tomar maiores proporções quando dançou a versão de Peter Wright, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, pois esta a fez receber alguns convites internacionais, como por exemplo, dançar no Sadler’s Wells Royal Ballet (atual Birmingham Royal Ballet), na Inglaterra. 

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Ana Botafogo e Marcelo Misailidis em “Giselle”, de Peter Wright. Theatro Municipal do Rio de Janeiro (acervo pessoal de Ana Botafogo)
Ana Botafogo e Marcelo Misailidis em “Giselle”, de Peter Wright. Theatro Municipal do Rio de Janeiro (acervo pessoal de Ana Botafogo)

 Já para Marcelo Misailidis, um de seus personagens mais especiais foi Onegin, criação de John Cranko (1927-1973), porque ele o interpretou no final de sua carreira de bailarino, em um momento em que já estava no auge da maturidade artística compreendendo melhor o sentido do ofício de um bailarino, e porque foi a última grande obra que dançou. Ele também revela que este foi um de seus personagens mais desafiadores, por ter diversos duetos com uma complexidade muito maior do que nos ballets de repertório do século XIX. Segundo ele, “os duetos coreografados por Cranko exigiam um arrojo técnico muito grande durante a execução e foram criados para intérpretes que tinham uma parceria em cena muito forte, como por exemplo, Marcia Haydée e Richard Cragun (1944-2012). Então era um verdadeiro desafio dançá-los”. 

Marcelo Misailidis e Ana Botafogo em “Onegin”, de John Cranko. Theatro Municipal do Rio de Janeiro (divulgação, Mário Veloso)
Marcelo Misailidis e Ana Botafogo em “Onegin”, de John Cranko. Theatro Municipal do Rio de Janeiro (divulgação, Mário Veloso)

Gustavo Carvalho conta que um personagem bem marcante na sua carreira foi Romeu, na versão de “Romeu e Julieta”, de Kenneth MacMillan (1929-1992). Quando era mais novo, ele sempre assistia a este balé em vídeo, interpretado por Julio Bocca e Alessandra Ferri, e considerava um sonho dançar esta obra. “Foi um grande privilégio poder ter sido ensaiado pelo próprio Bocca, que me ajudou muito a construir o personagem. Este foi o primeiro balé no qual realmente senti que o que fazia no palco não eram apenas passos, mas que estava realmente contando uma história completa com cada ação em cena”. 

Gustavo Carvalho em “Romeu e Julieta”, de Kenneth MacMillan. Ballet Nacional Sodre (divulgação, Carlos Quezada)
Gustavo Carvalho em “Romeu e Julieta”, de Kenneth MacMillan. Ballet Nacional Sodre (divulgação, Carlos Quezada)

Contar uma história em cena é sempre desafiador, ainda mais quando se vive duas personagens distintas na mesma obra, como acontece em “O Lago dos Cisnes”. Thamiris Prata revela que esta obra é muito difícil tecnicamente. “É necessário ter suavidade e controle para interpretar a Odette (cisne branco), e precisão e domínio para se transformar na Odile (cisne negro)”, fala a bailarina, que interpretou as personagens na versão de Mario Galizzi para a São Paulo Companhia de Dança. Esse é o grande desafio do balé: a dualidade das personagens e o transitar entre elas ao longo dos três últimos atos. Isso deixa a bailarina em estado de alerta o tempo inteiro. 

Thamiris Prata em “O Lago dos Cisnes”, de Mario Galizzi. São Paulo Companhia de Dança (divulgação, Silvia Machado)
Thamiris Prata em “O Lago dos Cisnes”, de Mario Galizzi. São Paulo Companhia de Dança (divulgação, Silvia Machado)

Para Yoshi Suzuki, dançar o Príncipe Siegfried de “O Lago dos Cisnes” também foi muito desafiador. Ele já tinha dançado esta obra muitas vezes no papel de Bobo da Corte, e são dois personagens completamente diferentes. “O bobo rouba a cena e tem uma grande liberdade coreográfica e cênica, já o príncipe precisa ter toda uma preocupação ao interagir com a corte e uma enorme rigidez de conduta, como era exigido na época. Tudo dele é mais contido e mais calmo, pois existiam regras a serem seguidas”, fala o bailarino. Yoshi precisou trabalhar muito essas características no seu processo de construção do personagem. 

Mel Oliveira considera a Aurora, do balé “A Bela Adormecida” – coreografia original de Marius Petipa (1818-1910) –, uma personagem muito difícil também, pois ela exige a técnica clássica pura. “As posições precisam estar esteticamente perfeitas, os braços muito baixos, a interpretação nobre, a técnica de pontas precisa e, ao mesmo tempo, a execução precisa ser suave. Achar este equilíbrio é fundamental”. 

PROCESSO DE CRIAÇÃO 

O processo de criação de um personagem é sempre muito pessoal. Cada artista tem uma maneira e um tempo diferente para se preparar fisicamente e mentalmente para estar pronto para a cena. Ana Botafogo revela que começava a se preparar sempre pela parte técnica: primeiro aprendia a coreografia. Depois, pouco a pouco, ia burilando as cenas com o ensaiador. Ela conta que, ao longo da carreira, teve algumas experiências nas quais pôde contar com o auxílio de professores de teatro, com o intuito de ter um preparo cênico mais eficaz, para alimentar melhor as personagens que iria interpretar. Esta é uma prática importantíssima, mas ainda bem rara nas companhias de dança aqui do Brasil, infelizmente. A São Paulo Companhia de Dança é uma instituição que conta com a presença de uma professora de dramaturgia na preparação de seus bailarinos, ação fundamental para a construção de seus personagens. 

Thamiris Prata também começa o seu processo pela parte técnica, porque acha mais fácil encontrar a personagem quando já está familiarizada com a coreografia e com todos os detalhes, pois cada movimento faz a diferença. Ela estuda muito como vai mover um braço, para onde vai olhar e gosta de estar segura executando a obra. Aí tudo se completa quando a personagem vem.

Quando era mais novo, Misailidis encarava a parte técnica como o primeiro desafio a ser vencido, mas depois percebeu rapidamente “que a parte técnica na verdade, era apenas uma possibilidade de se ter uma estrutura dentro da linguagem da dança para se comunicar melhor”. Segundo ele, a técnica é algo primário, que intrinsicamente você precisa estar com ela pronta. Então, com o tempo, passou a se interessar mais pela obra em si, pelos personagens e pelo desafio que aquele personagem poderia trazer.

Suzuki acrescenta que procura sempre não fechar completamente a ideia do personagem antes de começar a trabalhar com o remontador. Ele busca apenas ter inspirações, porque a interpretação vai depender muito do que o remontador está solicitando durante os ensaios. “Se o bailarino já vai com tudo muito pronto acaba bloqueando um pouco o processo criativo, e é importante estar com a mente aberta”, completa.

Yoshi Suzuki em “La Sylphide”, de Mario Galizzi. São Paulo Companhia de Dança (divulgação, João Caldas)
Yoshi Suzuki em “La Sylphide”, de Mario Galizzi. São Paulo Companhia de Dança (divulgação, João Caldas)

Perguntada sobre que artifícios e que tipo de pesquisa utiliza para construir uma personagem, Mel Oliveira afirma que procura assistir a bailarinas que já dançaram a obra e que gosta também de compartilhar informações e olhar os ensaios das suas colegas de trabalho, pois aprende muito observando outras pessoas. “Faço isso para me inspirar, não para copiar, e sim para achar a minha forma de interpretar”, afirma a bailarina. 

Melissa Oliveira e Damían Torío em “Manon”, de Kenneth MacMillan. Ballet Nacional Sodre (divulgação, Ballet Nacional Sodre)
Melissa Oliveira e Damían Torío em “Manon”, de Kenneth MacMillan. Ballet Nacional Sodre (divulgação, Ballet Nacional Sodre)

Carvalho afirma que saber a história do balé é muito importante, para entender exatamente o que acontece em cada ato. “É necessário ter um ótimo ensaiador ou remontador na sua frente todos os dias. Sempre vou para os ensaios como uma esponja, tentando sugar o máximo de aprendizado com eles, perguntando cada detalhe da obra”, revela. Gustavo considera fundamental compartilhar as suas ideias e percepções com a partner, para estarem em sintonia e se entenderem nos ensaios e na cena, contagiando a plateia. 

Sobre essa interação com o público, Ana Botafogo traz uma consideração importante: ela aponta que ao longo do tempo foi percebendo que é interessante acontecer uma palestra antes de um espetáculo, para introduzir a história. É fundamental abrir esse universo para o público leigo, porque alguns movimentos e gestos são muito naturais para os bailarinos, mas para o grande público não. Hoje ela tem essa consciência de que é preciso educar mais o público, sobretudo para contar todas as nuances das mímicas utilizadas pelos personagens nos balés de repertório. Tais ações acontecem em todos os espetáculos da São Paulo Companhia de Dança e também durante as temporadas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

Misailidis reflete que o bailarino precisa ter um potencial quase hipnótico com o público, pois a dança é uma arte muito especial. “Você cria algo que morre no mesmo momento em que está nascendo. Isso é muito complexo, porque você depende daquele momento de vivência absoluta do personagem”. Segundo ele, os balés de repertório acontecem quando você junta duas artes primárias: a música e a literatura. O bailarino faz uma retratação estética dessas duas potências, e para isso ele precisa transcender entre a emoção e a razão. 

É entre a razão e a emoção que um bailarino vai encantando o público ao longo de sua carreira, interpretando esses grandes personagens da história da dança. É justamente esse o seu desafio e o seu privilégio: poder viver várias “vidas” em uma só.


SERVIÇO

Aproveito para indicar um ballet de repertório que entrará em cartaz em breve no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, de 15 a 25 de agosto: “La Fille Mal Gardée”, na versão de Ricardo Alfonso. 

Esta obra foi criada originalmente, em 1789, por Jean Dauberval (1742-1806). É considerada o ballet de repertório mais antigo que ainda segue sendo remontado pelas companhias de dança no mundo. Não percam a oportunidade de assistir a Lise, Collas e a viúva Simone ao vivo!

Por fim, trago aqui também para apreciação vídeos explicativos, produzidos pela Royal Opera House, sobre as pantomimas de dois balés de repertório citados no texto, explicando o significado de cada gesto de seus personagens: 

1 - “O Lago dos Cisnes”, com Marianela Nuñez e Thiago Soares

 

2 - “ Giselle”, com Marianela Nuñez and Vadim Muntagirov

 

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