Corpos em movimento: o legado e os caminhos de companhias de dança emblemáticas no Brasil

por Redação CONCERTO 27/03/2025

Por Maria Eugênia de Menezes [Maria Eugênia de Menezes é jornalista e crítica]

No cenário da dança brasileira, algumas companhias marcaram uma trajetória singular ao romper barreiras estéticas, políticas e culturais. Entre elas, o Ballet Stagium se destaca como um precursor fundamental na cena contemporânea, tendo inaugurado, em 1971, um caminho de inovação e compromisso com a identidade do país. “Não existia nada no cenário da dança independente naquele momento. Só tínhamos as companhias ligadas ao governo: o balé do Theatro Municipal do Rio de Janeiro e de São Paulo. Nesse contexto, o nosso surgimento foi quase um milagre”, relembra Marika Gidali, fundadora da companhia ao lado de Décio Otero. 

Ao longo de seus 53 anos, o Stagium dançou e contou histórias que dialogam com múltiplos ritmos, lutas e celebrações. O contexto de sua criação e amadurecimento coincide com o período mais duro da ditadura militar, auge da repressão. Mas os censores, felizmente, não entendiam o que aqueles bailarinos queriam expressar. “Todos os nossos balés falavam da opressão, da liberdade, os anos 1970 empurraram a gente”, diz Marika, ainda hoje à frente da companhia. “Mais de duzentos bailarinos já passaram pela minha mão aqui no Stagium e eu nunca deixo o bailarino alienado. Ele precisa saber o que está fazendo, em que palco está pisando. E para isso eu recupero sempre a memória, essa memória do que já fizemos, por onde passamos.”

Desde eventos históricos marcantes – como o Holocausto, as lutas dos mineiros e o garimpo na Amazônia – até expressões culturais diversas, como o tango, a resistência indígena e as revoluções artísticas de 1922 – tudo isso fez parte do caldeirão criativo da companhia. Essa diversidade se reflete também nas relações com outras artes, como a música, a literatura e o teatro, abrangendo relações com grandes nomes da cultura brasileira. 

Mesmo atuando em diferentes espaços e contextos – de palcos tradicionais a ambientes inusitados, como favelas, presídios e festivais de rua –, a companhia se manteve fiel ao seu compromisso com a técnica rigorosa e com uma arte sem barreiras. Seus fundadores romperam com as amarras da época para alcançar novas plateias, questionando constantemente o que, para quem e como dançar.

Ao se tornar uma referência na dança brasileira, o Stagium inspirou a criação de novos grupos independentes e também impactou os modelos das companhias já estabelecidas, como o Balé da Cidade de São Paulo. 

O Balé da Cidade de São Paulo foi criado em 1968 como Corpo de Baile Municipal. Sua função inicial era acompanhar as óperas no Theatro Municipal e apresentar um repertório clássico. Mas os ventos da mudança sopraram rapidamente. Já nos anos seguintes à sua fundação, a companhia passou por transformações significativas que marcaram sua trajetória. Sua guinada ocorreu a partir de uma mudança deliberada na direção artística, ocorrida em 1974. Sob a liderança de Antônio Carlos Cardoso, Iracity Cardoso e Marilena Ansaldi, a companhia adotou uma postura experimental, abraçando a dança contemporânea. 

“A década de 1970 marcou o início de um movimento de afastamento do repertório clássico, à medida que a companhia passou a trabalhar com abordagens coreográficas oriundas de diferentes correntes das danças modernas, especialmente europeias, norte-americanas e latino-americanas, que se estabeleciam no Brasil”, considera Ana Teixeira, assistente de direção do grupo. Para ela, “as abordagens expandiram as possibilidades de construção cênica, ao mesmo tempo que reconfiguraram entendimentos sobre corpo e movimento dentro da companhia.”

‘Sinfonia Requiem’, de 1994, do Balé da Cidade (divulgação, Gal Oppido)
Sinfonia Requiem, de 1994, do Balé da Cidade (divulgação, Gal Oppido)

A partir daquele momento, passou-se a incentivar a criação de obras originais e a participação ativa dos bailarinos na construção de novas linguagens de movimento. Essa transformação permitiu ao grupo se tornar um verdadeiro laboratório de pesquisa, refletindo as novas tendências artísticas e respondendo às intensas transformações do país.

O reconhecimento internacional da companhia veio com a participação na Bienal de Dança de Lyon, em 1996, consolidando seu prestígio e abrindo a possibilidade de turnês por diversos países. Ao longo de suas mais de cinco décadas, o Balé da Cidade tem se destacado pelo rigor técnico, pela versatilidade artística e por seu compromisso com a inovação. 

Para Fernanda Bueno, bailarina e coordenadora artística-administrativa da companhia, “ao transitar por distintas abordagens coreográficas e colaborar com coreógrafas e coreógrafos de diferentes formações, o elenco amplia as possibilidades de articulação entre técnica, movimento e concepção cênica, diversificando os repertórios da companhia e tensionando convenções estabelecidas. A investigação técnica é fomentada de maneira indissociável de um pensamento artístico-crítico, mobilizando os limites da dança e suas inserções na cultura e na sociedade”.

Hoje, a companhia não só preserva uma rica herança histórica, mas também continua a inspirar novas gerações de artistas. Em seu novo espetáculo, “Réquiem SP”, o Balé questiona como corpos, contextos e expressões culturais podem se articular, ressaltando a singularidade de uma metrópole como São Paulo. 

Curiosamente, quem assina a coreografia de “Réquiem SP” e também a direção artística da companhia não é um paulista, mas Alejandro Ahmed, um uruguaio que se mudou para Santa Catarina ainda na infância e foi o responsável por colocar Florianópolis no mapa da dança nacional, com a criação do Grupo Cena 11 Cia. de Dança. 

Nos anos 1990, o Cena 11 surgiu em Florianópolis com uma proposta ousada e inovadora. Sua investigação partia dos limites do movimento. “O início dessa estrutura foi pensar uma dança em função do corpo. O que parecia um pouco óbvio, mas era, na verdade, uma maneira outra de pensar a dança. A ideia era se voltar para o corpo e todo o seu poder de transformação, de mudança, adaptação e evolução, e não se pensar só a dança, em função da própria dança”, rememora Ahmed, que responde pela direção artística do grupo. 

Dessa pesquisa, surgiram as bases para a interdisciplinaridade que se tornaria marca registrada das criações do grupo. Em cena, os bailarinos utilizavam dispositivos digitais, sensores e outras ferramentas tecnológicas que possibilitassem uma nova interação entre o corpo e o ambiente. “Ao olhar para o corpo, você olha para o contexto, olha para um ecossistema. Assim, a dança se tornou esse lugar ecossistêmico entre tecnologia e tudo o que expande as nossas definições de corpo”, diz o coreógrafo. 

A relação entre arte e ciência fica evidente em diversos espetáculos. Um bom exemplo é “Matéria escura”. O espetáculo utilizava extensões corporais e recursos tecnológicos para ampliar as possibilidades de movimento e percepção, criando uma experiência sensorial que desafiava as fronteiras entre o orgânico e o tecnológico. “A interdisciplinaridade sempre foi uma base estrutural do trabalho e, assim, fomos semeando novos modos de pensar”, considera Ahmed. 

Desafiando o tradicional eixo de produção artística brasileiro, historicamente concentrado nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, a companhia atraiu a atenção da crítica especializada e do público por sua capacidade de reinventar a dança contemporânea. 

‘Pequenas frestas de ficção sobre a realidade insistente’, produção do Cena 11 (divulgação, Gilson Camargo)
‘Pequenas frestas de ficção sobre a realidade insistente’, produção do Cena 11 (divulgação, Gilson Camargo)

Quem também se destaca por florescer e se consolidar em contextos não convencionais é a Quasar Cia de Dança. Sediada em Goiânia desde 1988, surgiu com uma proposta ousada e experimental, construindo uma linguagem coreográfica própria que mesclava influências urbanas e da dança popular, com uma estética contemporânea única. 

Internacionalmente reconhecido, o coreógrafo Henrique Rodovalho participa da Quasar Cia de Dança desde o seu surgimento. Em um trabalho continuado com o grupo, desenvolveu um estilo de movimento que se tornou sua marca registrada. Uma abordagem que fragmenta o corpo e segmenta o movimento, criando a impressão de uma reação em cadeia. Suas sequências coreográficas combinam gestos rápidos e precisos com a espontaneidade do movimento urbano.

Revisitando essa trajetória de mais de 30 anos de criação, Rodovalho identifica três momentos distintos. Um primeiro, em que bailarinos com formações e estilos diversos se uniam na criação de obras em formatos curtos, esquetes independentes, muito marcados por uma veia cômica, que não estavam conectados por uma narrativa única. Isso se altera em 1994, com a coreografia “Versus”, alinhavando as cenas com um fio condutor. E se consolida, a seguir, com “Divíduo” (1988), obra na qual o coreógrafo aprofunda seu pensamento sobre o movimento e sua lógica.

“Foi um momento em que me detive a pensar a dança mais a partir do movimento do que por ideias ou cenas”, esclarece Rodovalho. “Daí, pensei mesmo em fragmentar o corpo, dividir o corpo em partes, e essas partes se moverem independentes uma da outra. Claro que havia ali também influências da época, como Michael Jackson e breakdance. O corpo passou a ser todo decodificado, todo separado, fragmentado. Assim, fui construindo esse estilo, essa assinatura de movimento pela qual somos reconhecidos até hoje.” 

O terceiro momento nessa trajetória é de uma autoria que se ambiciona menos individual e mais compartilhada, com o coreógrafo buscando estabelecer uma troca maior com os bailarinos, estimulando-os a contribuir com suas próprias interpretações e a explorar novas possibilidades de movimento, o que confere às coreografias uma dimensão coletiva e transformadora.

Sobre isto, meu corpo não cansa, da Quasar, de 2014 (divulgação, Layza Vasconselos)
Sobre isto, meu corpo não cansa, da Quasar Cia de Dança, de 2014 (divulgação, Layza Vasconselos)

Essa sensibilidade para escutar e entender os corpos que dançam não se restringe ao trabalho do coreógrafo à frente da Quasar. Sua passagem por outras companhias, como a São Paulo Companhia de Dança, também frutificou nesse sentido. Em 2018, Rodovalho criou para a SPCD a obra “Melhor único dia”, premiada pela Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA). E, entre 2020 e 2024 foi coreógrafo residente da companhia. 

“O fortalecimento da criação nacional é um pilar fundamental em nossas atividades, refletido nos programas que abrem espaço para coreógrafos brasileiros na Companhia”, considera Inês Bogéa, diretora da São Paulo Companhia de Dança, relembrando que pela companhia já passaram desde coreógrafos consolidados, como Rodrigo Pederneiras, Marcia Haydée, e o próprio Rodovalho, até criadores mais jovens, que encontraram um espaço para a experimentação e desenvolvimento artístico no Ateliê de Coreógrafos Brasileiros. 

Com 17 anos de história, a companhia surgiu, relembra Bogéa, quando a dança no Brasil vivia um momento de crescimento significativo. Políticas de incentivo cultural, leis municipais e estaduais, além de prêmios, impulsionavam a criação e a manutenção de companhias e grupos em todo o país. Mas, mesmo que o cenário fosse de florescimento, a SPCD vinha ocupar uma espécie de lacuna que havia no panorama brasileiro, posicionando-se como um espaço de diálogo contínuo entre tradição e inovação, o clássico e o contemporâneo. “Esse equilíbrio dinâmico entre o clássico, o contemporâneo e as raízes brasileiras é uma característica essencial da Companhia. A cada nova criação, a SPCD reafirma seu compromisso com a tradição e a inovação, preservando a memória da dança e, ao mesmo tempo, abrindo caminhos para o futuro.”

Sao Paulo Companhia de Dança produziu Indigo Rose, de Jirí Kylián (divulgação, Willian Aguiar)
Indigo Rose, de Jirí Kylián, produção da São Paulo Companhia de Dança (divulgação, Willian Aguiar)

E são muitos os caminhos e possibilidades para a dança na atualidade. Hoje, apenas no Estado de São Paulo, existem 18 companhias públicas em atividade, além de diversos grupos privados. Um cenário bastante distinto daquele descrito pela pioneira Marika Gidali no momento de fundação do Balé Stagium. 

Quem ajudou a abrir e, principalmente, a consolidar esses caminhos para a dança brasileira foi o Grupo Corpo. Criado em 1975, o Corpo revolucionou ao romper paradigmas clássicos e estabelecer uma linguagem que une a precisão do balé com a expressividade da dança contemporânea e elementos da cultura popular. Com essa abordagem inovadora, o grupo não só ampliou os horizontes estéticos, mas também transformou o cenário artístico. Era o momento de conquistar plateias, tornando a dança mais acessível e envolvente para diversos públicos. 

Essa relação forte com o público – tanto no Brasil quanto no exterior – certamente tem muitas explicações. Uma delas é o olhar do Corpo para a cultura brasileira, que se estabelece com força a partir de 1992, quando se iniciou a fase que viria a definir a identidade do Grupo Corpo. Foi quando os compositores passaram a ser convidados a criar trilhas sonoras exclusivas para os trabalhos do grupo, a maioria deles, brasileiros. Esse movimento teve como marco o espetáculo 21, com música composta por Marco Antônio Guimarães e Uakti. 

A linguagem única que o grupo viria a desenvolver é resultado de um processo de incorporação de elementos da cultura brasileira. “O que ajudou muito foi trabalhar com músicos, compositores de música popular brasileira, esses elementos começaram a chegar quase que naturalmente”, acredita o coreógrafo Rodrigo Pederneiras. “Foi uma coisa que veio a partir de buscas de danças populares, danças folclóricas, que começamos a trazer para o nosso trabalho, mesclando um pouco com a técnica clássica que nós usávamos e até hoje utilizamos.”

‘Parabelo’, do Grupo Corpo (divulgação, José Luiz Pederneiras)
‘Parabelo’, do Grupo Corpo (divulgação, José Luiz Pederneiras)

Clássicas, modernas ou contemporâneas – as técnicas estão sempre se modificando. Mas o legado dessas companhias transcende a técnica. Em suas trajetórias, elas reconfiguraram a dança brasileira ao romper barreiras e desafiar paradigmas, democratizando o acesso à arte e inspirando novas gerações. Seja pela ousadia pioneira do Ballet Stagium, pelo espírito contestador do Balé da Cidade, pela revolucionária linguagem do Grupo Corpo, pela descentralização representada por companhias como a Quasar ou pela conversa com a tradição proposta pela São Paulo Companhia de Dança, os corpos em movimento avançam, contam uma história plural e diversa como o Brasil. 


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