A dança do (e no) teatro musical: processos criativos, mercado e democratização

por Marcela Benvegnu 22/10/2024

A dança do e no teatro musical não é apenas um meio de entretenimento, mas um veículo de transformação social, cultural e econômica, uma poderosa ferramenta de narração e expressão, que pode – e deve – ser acessível a todos, independentemente de origem social ou localização geográfica

Há quem ache que a relação entre a dança, o canto e a interpretação culminando em teatro musical é algo dos últimos 20 anos no país. Entretanto, o nascimento deste formato data de meados de 1858, no Rio de Janeiro, quando estreia no Teatro Ginástico, “As surpresas do Senhor José Piedade”, de Justiniano de Figueiredo Novaes, cujo tema era a recapitulação dos principais acontecimentos do ano anterior – a exemplo das “Ziegfeld Follies”, de Florenz Ziegfeld (1869-1932), na Broadway.

Embora a obra de Novaes tenha sido um fracasso e retirada de cartaz pela censura três dias após a estreia, ela abriu caminho para as casas de operetas e difundiu o teatro de revista no Brasil. Inspirado pelo teatro de revista francês, esse estilo, que combinava humor, música, coreografias e irreverência, começou a perder relevância por conta dos filmes de Hollywood que integravam canto, dança e atuação, e pelo surgimento da televisão. Esse contexto histórico é essencial para entender como o teatro musical se transformou no Brasil ao longo do século XX.

“Escândalos 1950” (1950), de Chianca de Garcia (1898-1983) e Helio Ribeiro, com direção musical de Vicente Paiva (1908-1964) e Bibi Ferreira (1922-2019), é considerado o primeiro espetáculo no Brasil a adotar o formato de musical americano. A montagem trouxe uma integração mais estruturada entre a música, a dança e a dramaturgia e marcou uma evolução no gênero, aproximando o teatro musical brasileiro dos padrões vistos em Nova York. Depois deste título, mais de quatrocentas grandes produções já foram feitas no Brasil, sejam montagens autorais ou “american musicals”, peças cujos direitos são comprados para serem remontadas/adaptadas no país, movimentando uma das maiores indústrias do entretenimento. Vale lembrar que a primeira adaptação da Broadway no Brasil aconteceu em 1962, em “My Fair Lady”, com Bibi Ferreira e Paulo Autran na versão de Victor Berbara e Henrique Pongetti. 

A aquisição de um título envolve diversos fatores, como a definição do público-alvo, a popularidade da obra e a sinergia com o teatro em questão, entre outros

Essa evolução culmina no cenário atual, em que produtores e coreógrafos buscam incessantemente formas de inovar e conectar com o público. “Estamos sempre em busca de espetáculos com repertórios familiares ao público, especialmente os chamados musicais ‘JukeBox’, onde canções conhecidas são integradas a uma narrativa”, conta Bárbara Guerra, coreógrafa e produtora da Atual Produções e da Bárbaro Produções, que conta com títulos como “Elvis – A Musical Revolution”, em cartaz no Teatro Santander, em São Paulo, no qual ela assina a coreografia. “A aquisição de um título envolve diversos fatores, como a definição do público-alvo, a popularidade da obra e a sinergia com o teatro em questão, entre outros. Buscamos constantemente espetáculos que incluam grandes números de dança ou que nos ofereçam a possibilidade de transformar cenas em coreografias impactantes”. 

A relação entre a criação e adaptação de coreografias também se destaca nesse processo. “Um espetáculo musical que já foi montado na Broadway já vem com texto, roteiro, música. Às vezes podemos criar a coreografia, às vezes não. Quando temos um musical autoral, com textos e músicas novas, é um processo totalmente diferente. Nesses eu tenho envolvimento até maior, como foi, por exemplo, em ‘Elis – A Musical’, ‘Tarsila – A Brasileira’ ou mesmo em ‘Os Trapalhões’. Nos debruçamos na biografia dessas pessoas, tentamos entrar na cabeça delas tentando imaginar o que sentiam para podermos coreografar. Isso me abre um campo de criação grande, porque não fico preso ao espaço ou à época, mas à psique do personagem”, conta o coreógrafo Alonso Barros. “Com obras que participei como ‘Peter Pan’, ‘Alguma coisa podre’, ‘Kiss me Kate’, ‘Um violinista no telhado’, o material está pronto, então é outra forma de trabalhar, porque já conhecemos a história, sabemos o que acontece ali”, completa.

Entre o musical autoral e a remontagem, o processo criativo do coreógrafo encontra diferentes desafios e oportunidades

Entre o musical autoral e a remontagem, o processo criativo do coreógrafo encontra diferentes desafios e oportunidades. “Meu processo coreográfico sempre se inicia com entendimento da obra na visão do diretor e do elenco. A gente conta histórias com o corpo, então temos que saber exatamente o que a cena pede, porque a coreografia tem que passar essa ideia para a plateia, independente se é um autoral ou uma adaptação. Existe um casamento do coreógrafo com o diretor”, fala Fernanda Chamma, coreógrafa e diretora, que se dedica ao segmento há mais de 30 anos. 

A questão do envolvimento emocional e criativo também é crucial para coreógrafos que trabalham com adaptações e criações originais. “Fiz uma adaptação de ‘Alô, Dolly’, com direção do Miguel Falabella, que para mim foi o meu melhor trabalho, o qual eu pude colocar o meu sentimento e meu estilo como coreógrafa. A obra vem pronta, recebemos uma partitura para uma releitura e a coreografia tem que contar essa história como é e eu tenho que partir de um ponto principal, por exemplo. Já em ‘Ney Matogrosso – homem com H, o musical’, que é um autoral, a obra me trouxe a possibilidade de trabalhar cada corpo, de desenhar o movimento do cenário, dos praticáveis, de ter uma liberdade de criação em diálogo com a música. O trânsito é maior, mas gosto de todos os modos de se fazer teatro”, exemplifica Fernanda. “O teatro musical faz você ser único, ter a sua personalidade, as suas características. Acredito que foi isso que me encantou deste o início”, completa.

Coreógrafa de diversos espetáculos, como “Annie”, “Sunset Boulevard”, “Concerto para dois” e “Uma linda mulher”, além de programas de TV como “Dancing Brasil” e “Masked Singer”, Katia Barros começa seu processo criativo por meio de um trabalho corporal com todo o elenco, para equalizar e construir os corpos dos personagens principais e secundários. “Costumo escrever o storytelling da cena a partir da direção do diretor ou do texto e depois desenvolvo cada momento da coreografia. Cada diretor tem seu caminho de construção e concepção. Nos últimos anos, tenho trabalhado com o Fred Hanson, americano radicado em NY, que vem muito ao Brasil. Fred começa toda a concepção pelo menos oito meses antes das audições. Quando chegamos nessa primeira fase da produção já temos grande parte do musical planejado, assim podemos fazer uma audição bem direcionada dos papéis principais ao ensamble. Durante a criação, o cronograma é feito com muito esmero para que a direção musical, coreográfica e geral sejam as mais assertivas possíveis”, fala Katia.

Diferente de alguns formatos como espetáculos de dança, onde a coreografia por si só já basta como forma de expressão, no teatro musical a dança serve à história

Diferente de alguns formatos como espetáculos de dança, onde a coreografia por si só já basta como forma de expressão, no teatro musical a dança serve à história. Cada movimento está intrinsecamente conectado à trama, aos personagens e às emoções que expressam. O estilo de dança varia de acordo com a época, o gênero musical e as necessidades dramatúrgicas. Para Bárbara Guerra, a sensibilidade musical é essencial para capturar e traduzir a narrativa teatral. “A música, para mim, serve como uma ponte que conecta as emoções à dramaturgia, sendo esta o ponto de partida para a criação dos movimentos. Cada expressão corporal que elaboro tem o propósito de intensificar a narrativa, permitindo que a dança não apenas complemente a história, mas também potencialize a dramaturgia. Para mim, a cena é dança, e a dança é cena — ambas se fundem e dialogam de forma orgânica, enriquecendo a história e intensificando a experiência do público do início ao fim”, conta Bárbara.

Essa integração entre música, dança e narrativa no teatro musical permite que a dança assuma o protagonismo quando palavras e melodias já não conseguem expressar plenamente as emoções desejadas. Bárbara acredita que a dança, em muitos espetáculos, não é apenas um complemento, mas uma extensão vital da narrativa. Sua próxima montagem como produtora e coreógrafa é “Tom Jobim Musical”, com texto de Nelson Motta e Pedro Brício, que estreia esta semana no Rio de Janeiro, no Teatro Casa Grande.

MERCADO E DEMOCRATIZAÇÃO

Hoje o mercado do teatro musical no Brasil emprega milhares de pessoas, nos mais diversos segmentos, desde diretores, diretores de movimento, coreógrafos, bailarinos, atores, cantores, músicos, regentes, figurinistas, cenógrafos, libretistas, tradutores, preparadores musicais, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, contrarregras, dramaturgistas, aderecistas, camareiras, fotógrafos, entre outros. “O mercado movimenta desde a ponta da escola de dança ao cliente final que é a plateia. O teatro musical tem o poder de cativar as pessoas, tem uma história que todos podem entender e é para todas as idades e, sobretudo, popular, porque hoje conseguimos oferecer ingressos que as pessoas podem pagar”, fala Fernanda. 

Segundo ela, que prepara para 2025 “Vila Sésamo” e a volta de “O Pequeno Príncipe”, que tem coreografia de Katia Barros, o mercado está aquecido e algo que deve ser pensado diz respeito à circulação das obras. “É preciso criar repertório de teatro musical. Às vezes, temos obras muito caras que ficam pouco tempo em cartaz. Eu acredito no repertório, na circulação e sair do eixo Rio-São Paulo. ‘Silvio Santos – o musical’, por exemplo, está indo para o terceiro ano, e temos tido bilheterias esgotadas de Norte a Sul, por onde passamos. As pessoas querem ver teatro musical. O mesmo acontece com ‘Ney’. E isso é maravilhoso, porque o patrocinador vê que a marca dele está tendo visibilidade e que circula para os mais diferentes públicos”, completa Fernanda. Em termos de circulação, assim como salientou Fernanda, obras como “Elis – A Musical” e “Peter Pan”, com coreografias de Barros, se preparam para reestrear em breve, em São Paulo. 

Segundo Bárbara “produzir é um desbravar. Depois da pandemia tivemos um aumento significativo nos valores de locação de equipamentos, espaços e na mão de obra, impactando nos custos de produção. No entanto, acredito que o maior desafio continua sendo encontrar parceiros que confiem no projeto e invistam nele, permitindo sua execução conforme o planejado”. 

A análise revelou que, para cada R$ 1 investido, são gerados R$ 8,25 na economia local e R$ 1,92 em retorno em tributos federais e mais de 13 mil empregos anuais

A pesquisa “Impacto Econômico do Teatro Musical” (2018), encomendada pela Sociedade Brasileira de Teatro Musical – uma associação composta por alguns dos principais produtores de espetáculos musicais do país – para a Fundação Getúlio Vargas, traçou um panorama completo da força significativa dos musicais, incluindo impacto total na economia, retorno sobre investimento via leis de incentivo à cultura, criação de empregos diretos e indiretos e geração de impostos. A análise revelou que, para cada R$ 1 investido, são gerados R$ 8,25 na economia local e R$ 1,92 em retorno em tributos federais e mais de 13 mil empregos anuais. Esses números comprovam o impacto significativo do setor na economia.

“O mercado do teatro musical está muito mais aquecido do que quando comecei, assim como as possibilidades de estudo. Novos títulos chegam a todo tempo, com o cuidado de escolhas que apresentam questões de diversidade e com papéis para todos. Acredito que só iremos crescer, sobretudo, por conta da possibilidade de fazemos arte via leis de incentivo à cultura, que nos possibilitam a contratação de uma grande quantidade de profissionais das mais variadas áreas e segmentos”, fala Katia Barros. “Hoje existe uma oferta muito grande nesse momento com relação ao teatro musical. E estamos em um movimento de retomada da Lei Rouanet, assim acredito que daqui a um tempo, os investimentos serão cada vez maiores”, completa Alonso, que esteve na adaptação de “Chorus Line” (1983), no Brasil, musical ícone da história que poderá ser visto pelos brasileiros novamente em 2025, com direção e coreografia de Bárbara Guerra, que comprou os direitos recentemente.  

As leis de incentivo são essenciais para a sustentabilidade do mercado teatral e para o fortalecimento da indústria cultural no Brasil

“As leis de incentivo são essenciais para a sustentabilidade do mercado teatral e para o fortalecimento da indústria cultural no Brasil. Ao contrário de outros países, aqui enfrentamos dificuldades em levantar e manter projetos nas dimensões do teatro musical, que envolvem diversas equipes e setores. Essas leis oferecem o suporte necessário para que produções de grande porte possam ocorrer, gerando retorno econômico tanto para o país quanto, especialmente, para o estado de São Paulo”, afirma Bárbara.

Segundo Fernanda, quando ela olha para trás, para todas essas histórias, trajetória, parceiros de vida e trabalho, entende como a dança a preparou para chegar a esse lugar, sendo a grande protagonista. “A dança me deu essa bagagem. Aprendi com os festivais, com os alojamentos, aprendi a trabalhar sem incentivo, a transformar tudo o que faltava, para que hoje a gente consiga levar um pouco mais de cultura e arte, a partir da nossa arte para o país. É pela dança”, ressalta a diretora, que tem uma escola de teatro musical privada em São Paulo, o Estúdio Broadway. 

O mercado das escolas segmentadas também tem crescido e formado cada vez mais profissionais para o segmento. A exemplo do Estúdio Broadway, a cidade de São Paulo tem o Teen Broadway, de Maíza Tempesta, e o Centro de Estudos e Formação em Teatro Musical (CEFTEM), de Rainer Tenente, entre outros. E na gestão pública, vale ressaltar o curso de teatro musical da São Paulo Escola de Dança, com duração de dois anos, cujos alunos saem com DRT para o mercado de trabalho. 

A dança do e no teatro musical não é apenas um meio de entretenimento, mas um veículo de transformação social, cultural e econômica, uma poderosa ferramenta de narração e expressão, que pode – e deve – ser acessível a todos, independentemente de origem social ou localização geográfica.


PARA ASSISTIR

“Alô, Dolly” (musical completo), com coreografia de Fernanda Chamma e direção de Miguel Falabella (clique aqui)

“O homem de La Mancha” (musical completo), com coreografia de Katia Barros e direção de Miguel Falabella (clique aqui)

“Um violinista no telhado” (musical completo), com coreografia de Alonso Barros e direção de Charles Möeller e Claudio Botelho (clique aqui)

“Elvis - A Musical Revolution”, em cartaz no Teatro Santander, em São Paulo, com coreografia de Bárbara Guerra. Ingressos variam de R$ 19 a R$ 380 (clique aqui para comprar)

“Tom Jobim Musical”, a partir de 17 de outubro, no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, com coreografia de Bárbara Guerra. Ingressos variam de R$ 21 a R$ 320 (clique aqui para saber mais)

Cena de “Alô, Dolly” (divulgação, Caio Galucci)
Cena de “Alô, Dolly” (divulgação, Caio Galucci)
Cena de “Ney” (divulgação, Caio Galucci)
Cena de “Ney” (divulgação, Caio Galucci)
Cena de “Peter Pan” (divulgação, João Caldas)
Cena de “Peter Pan” (divulgação, João Caldas)

 

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