Quando se ouve falar de dramaturgia, o que costuma vir primeiro à mente? Uma peça teatral? Uma história bem contada? Um drama de forte intensidade?
Essas percepções emanam porque o surgimento do conceito se deu efetivamente no teatro, ainda no século XVIII. No entanto, o forte cruzamento de linguagens que começou a se intensificar no fim do século XX levou a dramaturgia a expandir o seu alcance para diferentes artes, como o audiovisual, as artes visuais e, por que não, a dança.
Para quem costuma atrelar essa concepção à palavra (seja ela literária ou verbal), pode haver certo estranhamento ao vê-la associada primordialmente ao corpo e ao movimento. Mas quando se pensa nela como uma forma de escrita da cena, a ideia de uma dramaturgia da dança começa a fazer mais sentido.
Ou melhor: dramaturgias. Assim mesmo no plural, para ressaltar os muitos modos existentes de se pensar essa escrita
Ou melhor: dramaturgias. Assim mesmo no plural, para ressaltar os muitos modos existentes de se pensar essa escrita, pois ela diz respeito à “organização dos elementos em cena e a relação deles entre si em diálogo com o público”, como define o artista Alexandre Roiz, que estuda o tema em seu mestrado na Universidade Federal de Uberlândia.
Quando mudam as peças envolvidas nesse xadrez, muda também a perspectiva dramatúrgica. Por isso, Roiz propõe para este campo um referencial teórico negro em paralelo às perspectivas já existentes, redigidas em sua maioria, no Brasil, por pesquisadores brancos. Nos últimos 30 anos, eles vêm consolidando este conceito para dar nome a uma prática já presente na dança cênica muito antes de ser encarada dessa forma.
Um exemplo está nos centenários balés clássicos de repertório, como O lago dos cisnes ou A bela adormecida. De caráter narrativo, esses espetáculos precisam de uma sólida construção dramatúrgica para a dança e a história se tornarem uma só.
“A dramaturgia vai justificar a existência dos personagens e conduzir a relação entre eles. A bailarina que interpreta Odile (o Cisne Negro) não pode abandonar as características da personagem no momento em que faz 32 fouettés. Se isso acontece, o público perde o propósito do balé e tudo vira apenas um amontoado de passos”, afirma Paulo Melgaço, professor da Escola Estadual de Dança Maria Olenewa, do Rio de Janeiro.
A necessidade de conectar os elementos presentes no palco, no entanto, nem sempre recai sobre um profissional específico para este fim. No balé, a missão é muitas vezes incorporada ao ofício do remontador, também responsável por transmitir as sequências a serem executadas, ou do coreólogo, a quem cabe o estudo e registro da movimentação.
Na Europa, é mais frequente a figura de um dramaturgista ao lado de um coreógrafo, como é o caso de Nadja Kadel, que se vê como uma “facilitadora” de boa parte do repertório do alemão Marco Goecke
Na Europa, é mais frequente a figura de um dramaturgista ao lado de um coreógrafo, como é o caso de Nadja Kadel, que se vê como uma “facilitadora” de boa parte do repertório do alemão Marco Goecke, montado no Brasil pela São Paulo Companhia de Dança.
Durante os anos nos quais atuou no elenco do Salzburg Ballet, na Áustria, entre 2017 e 2021, Márcia Jaqueline também teve a oportunidade de experimentar esse campo mais de perto: a companhia contava com um dramaturgista com olhar atento, em especial, aos balés narrativos. De volta ao Brasil, onde é primeira-bailarina do Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, ela se valeu da experiência para montar sua primeira obra, Macabéa, criada para a Cia. de Ballet Dalal Achcar a partir do romance A hora da estrela, de Clarice Lispector.
“Não queria fazer nada abstrato, pois, como bailarina, acredito que contar histórias acrescenta muito à cena. Pensei então em buscar alguns gestos para diferenciar os personagens e fazer com que cada um deles tivesse o seu lugar”, afirma.
E quando não há uma história por trás? Como se materializa a dramaturgia na dança?
O coreógrafo Anselmo Zolla, por exemplo, prefere encarar a dramaturgia como “direção de movimento” e sempre escala em suas criações alguém para exercer este papel. Para Marcia Milhazes, pensar a dramaturgia é compor “partituras de gestualidades que devem encontrar sentidos em cada intérprete”, em um processo que prefere manter a portas fechadas entre ela e os bailarinos de sua companhia. “Quanto mais os artistas da cena estão mergulhados nessas questões, mais elas se tornam verdadeiras naqueles corpos e eles ficam aptos a dividi-las com o público”, pontua a coreógrafa.
Silvia Soter é uma das pessoas há mais tempo creditada como “dramaturgista” nas fichas técnicas de espetáculos pelo Brasil. Ela desempenha esse papel em criações de artistas contemporâneos como Marcelo Evelin, Dani Lima e Lia Rodrigues, com a qual trabalha desde 2002.
“No início essa relação não tinha nome. Começou com uma pesquisa que realizei para uma obra. Depois comecei a acompanhar esporadicamente os ensaios da companhia. Lia é uma artista intelectual e sigo uma trajetória ao lado dela, colaborando com leituras e referências”, explica a também professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
O trabalho mais recente das duas é Encantado (2021), que ganhou o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte de melhor Coreografia/Criação de 2022 e rendeu a indicação de Lia Rodrigues a melhor coreógrafa no Bessie Awards, uma das principais premiações da dança nos Estados Unidos.
A peça foi produzida durante a pandemia de Covid-19, em um momento no qual a sede da companhia, na Favela da Maré, no Rio de Janeiro, dividia espaço com uma força-tarefa de salvaguarda da comunidade no período de emergência sanitária.
Essa realidade escorreu para a obra, transformada em uma colorida celebração à vida. Soter se manteve por perto durante todo o processo de montagem, propondo conexões, transições e reflexões para evidenciar uma ideia de vitalidade em vários planos e níveis existenciais.
No vaivém de informações, tudo o que circula se torna tão intrínseco à criação que, ao vê-la no palco, fica difícil delimitar exatamente onde está o dedo do dramaturgista e onde está o do coreógrafo, do bailarino, do iluminador, do figurinista, do sonoplasta ou do diretor
No vaivém de informações, tudo o que circula se torna tão intrínseco à criação que, ao vê-la no palco, fica difícil delimitar exatamente onde está o dedo do dramaturgista e onde está o do coreógrafo, do bailarino, do iluminador, do figurinista, do sonoplasta ou do diretor. “Não consigo recortar. Sei que meu trabalho está ali, mas tudo se dissolve em uma questão maior”, diz Soter.
Em um cenário de fronteiras borradas, talvez uma certeza seja a contribuição da dramaturgia à dança e, em especial, com quem ela deseja se relacionar. “Enquanto artista, você apenas quer dividir algo muito valioso, fruto de muito trabalho. E quando o público se reconhece no que vê, aquilo passa a ser dele. Esse pra mim é o ideal de uma dramaturgia plena”, conclui Milhazes.
PREPARE-SE
Fique de olho para conferir produções de artistas citados neste artigo e que estarão em cartaz nas próximas semanas:
Paris, de Anselmo Zolla, com a Studio3 Cia. de Dança. 23 de agosto, no Masp Auditório, em São Paulo (SP), dentro da 5ª Semana Paulista de Dança
Paz e Amor II, de Marcia Milhazes, com a Marcia Milhazes Companhia de Dança, 24 de agosto, no Masp Auditório, em São Paulo (SP), na programação da 5ª Semana Paulista de Dança
Macabéa, de Márcia Jaqueline, com a Cia. de Ballet Dalal Achcar. 25 de agosto, no Masp Auditório, em São Paulo (SP), na programação da 5ª Semana Paulista de Dança
Encantado, de Lia Rodrigues, com a Lia Rodrigues Companhia de Danças. 25 e 26 de agosto, no Espaço Cultural Renato Russo, em Brasília (DF), na programação do Movimento Internacional de Dança
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