Música e dança: parcerias na cena

por Redação CONCERTO 20/09/2024

Por Flávia Fontes Oliveira [roteirista e jornalista]

O francês Marius Petipa (1818-1910) já vivia em São Petersburgo há cerca de 40 anos, contratado como coreógrafo do Teatro Mariinski, quando a parceria com outro artista da mesma casa, o compositor Piotr Ilitch Tchaikovsky (1840-1893), legou ao mundo da dança – e da música – as obras O lago dos cisnes (1895), O quebra-nozes (1892), e A bela adormecida (1890). À época, relatos davam conta de que a composição deixou de ser um mero “acompanhamento” para ser inspiração na criação da coreografia. O encontro deu certo: para além do mundo da dança, quase todo mundo se lembra da princesa que virou cisne, por exemplo, e já deve ter cantarolado trechos de alguma dessas obras. É possível que Petipa não tivesse tanto reconhecimento sem a colaboração musical quase no fim de sua carreira.

O caso descrito demonstra e reforça como a história da dança se entrelaça com a música, em um diálogo de inovações para as duas artes. Há diversas formas de ligação em trabalhos conjuntos e criações frutíferas para os dois lados. 

Em 2008, ano de sua criação, a São Paulo Companhia de Dança levou aos palcos do Teatro Sérgio Cardoso Les Noces (1923), coreografia de Bronislava Nijinska (1891-1972), com música de mesmo nome de Igor Stravinsky (1882-1971), uma referência da dança e da música do século XX. Trabalho criado inicialmente para os Balés Russos de Diaghilev, em sua estreia, surpreendeu e causou estranhamento à plateia parisiense com sua força cênica: sem hierarquia de bailarinos, o coro dançando em conjunto conduz a história, cujo mote é um casamento de camponeses russos, acompanhado de uma orquestra com uma formação também incomum, quatro pianos, vozes e percussão. A última imagem, ao som apenas dos pianos, uma pirâmide de cabeças femininas, finaliza uma sequência de inovações de movimentos geométricos, rigorosos, que fugiam dos braços e pernas esvoaçantes de obras clássicas anteriores. 

Em seu recente livro, La Nijinska, Choreographer of the Modern, a historiadora da dança americana Lynn Garafola credita à coreógrafa um papel decisivo no modernismo na dança, em grande medida, por sua sofisticação musical e rítmica. O trabalho colocou um novo passo no modo de dança e música dialogarem – em uma matéria recente para o jornal The New York Times, o remontador Howard Sayette disse que a maneira como as batidas nas frases musicais são contadas nem sempre correspondem como os passos são contados. O mesmo livro lembra da influência dessa refinada musicalidade de Nijinska em George Balanchine (1904-1983), criador do New York City Ballet, e outros pupilos do século XX.

No Brasil, O grande circo místico, hoje álbum de canções reverenciadas de Edu Lobo e Chico Buarque, foi inicialmente trilha sonora para espetáculo de mesmo nome criado em 1983 para o Balé Teatro Guaíra, com direção de Naum Alves de Souza (1942-2016). A ideia do próprio diretor surgiu a partir do poema de mesmo nome de Jorge de Lima (1893-1953), que fala de várias gerações de uma família circense. A coreografia teve duas versões, em 1983, de Carlos Trincheiras; e quase duas décadas mais tarde, em 2002, Luís Arrieta fez sua releitura. As duas montagens conquistaram enorme sucesso, com turnês de dois anos por todo o Brasil, e mais de 200 mil espectadores. “É um caso dos mais felizes de música composta para dança no Brasil, porque são canções populares, com um apelo enorme com o público, há Beatriz, a História de Lily Braun, por exemplo. Para o balé, a música dava a dramaturgia mesmo, ela contava a história”, diz Samuel Kavalerski, que dançou a versão de 2002 e hoje atua como professor e assistente de direção em projetos de dança e teatro. 

Cena de ‘O grande circo místico’ (divulgação, Tom Lisboa)
Cena de ‘O grande circo místico’ (divulgação, Tom Lisboa)

A coreógrafa Liliane de Grammont também gosta de pensar na música como dramaturgia. “A dança está longe de ser só movimento, ela é também dramaturgia. Neste ponto, a música é um dos principais elementos do ‘fazer sentir’, de criar a emoção”, coloca. Ela tem uma longa parceria com o instrumentista e compositor Ed Côrtes, com quem, hoje, é casada. A primeira colaboração aconteceu em 2011, em um projeto com o quarteto de cordas do Theatro Municipal de São Paulo. Hoje, já assinaram mais de vinte peças juntos em um trabalho de influência dos dois lados. “Nossa troca é muito verdadeira, honesta, e hoje aprendemos a confiar e dar uma chance àquela ideia ou sonoridade, que o outro propôs, mas que num primeiro momento você estranha”, revela Liliane, que hoje é coreógrafa residente e diretora da Cia. de Dança de São José dos Campos.

O trabalho conjunto já rendeu obras para companhias como a São Paulo Companhia de Dança, o Balé Teatro Guaíra, o Balé da Cidade de São Paulo, a Raça Cia. de Dança, além de trabalhos publicitários e corporativos. Para Ed Côrtes, cujas trilhas incluem composições para cinema, teatro e publicidade, fazer música para dança é a mais agradável, “porque estamos falando de imagem, ou seja, dramaturgia e imagem. No teatro tem gente falando, no cinema também tem gente falando, na publicidade. Sempre tem interferências na música. Com a dança, é imagem, ou seja, gente em movimento, dramaturgia e música”, coloca Côrtes. 

Cena de ‘Samba e amor’ (divulgação)
Cena de ‘Samba e amor’ (divulgação)

Sem ter um meio único de criar, Lili conta que o processo de criação é sempre um “vai e volta”, costurando o que deu certo, o que precisa de ajustes no movimento. “Alguns trabalhos tiveram a necessidade de serem iniciados pela música, como o Mochileira do espaço, um espetáculo híbrido entre teatro e dança, aqui a música foi composta primeiro por narrar e costurar a dramaturgia. Já Samba e amor, nosso último trabalho junto, eu iniciei pelos movimentos, e fomos fazendo simultaneamente.”

O compositor e produtor musical Beto Villares – responsável pela trilha da obra Respiro (2020), de Cassi Abranches, em repertório da SPCD, do Grupo Marzipan, entre outros –, também transita entre diferentes linguagens artísticas. Como Lili e Ed Côrtes, o processo, para ele, é muito vivo, que envolve se aproximar de ensaios e caminhos da criação coreográfica. “Existe uma troca muito viva, um processo que não acontece inteiro sem que as duas partes conversem. A dança é algo relacionado a várias pessoas, executando a corporalidade de várias pessoas. É fundamental assistir a ensaios, que é quando começo a entregar e ir adaptando, pelo jeito que as pessoas vão reagindo e vão dizendo o que mais posso fazer, o que que você pode tirar e como que aquilo está resultando”, diz Villares. 

Alex Soares, coreógrafo e diretor artístico da Cia. Jovem de Dança de Jundiaí, também acredita que a música, o som, guia o espetáculo, dando ritmo e sinalizando o roteiro. Em seu trabalho como coreógrafo costuma ele mesmo criar as trilhas. “Faço no computador, usando banco de som e efeitos. Esse processo vem de quando estudei cinema, da ideia do desenho de som, gosto de usar isso, que faço um desenho de som”, diz Soares.

Cena de ‘1984’ (divulgação, Pedro Falcão)
Cena de ‘1984’ (divulgação, Pedro Falcão)

Por outro lado, como atual diretor artístico da Cia. Jovem, muitas vezes coloca em cena peças dançadas com orquestra ao vivo, como acontece em muitas casas de corpos estáveis não apenas do Brasil, um diálogo fino entre dança e música: “Acho que posso falar da época que era bailarino do Balé da Cidade também. Dançar com orquestra é sempre um desafio. Gosto de estimular muito os bailarinos a não contar, porque eles têm tendência a querer contar e resolver ali em número. Isso deixa os bailarinos mais alertas, com a percepção mais aguçada. E tem a questão de ser ao vivo, o andamento de cada dia, as pequenas variações. É uma possibilidade muito boa para o artista poder atuar como intérprete nesse lugar. E um bailarino com um bom ouvido é mais sensível, consegue achar nuances no que está fazendo”, finaliza. 

Ao criar tantas possibilidades de ligações, música e dança sugerem novas aproximações com o público através dos tempos.

Para assistir

Clique aqui para assistir a Les Noces em versão completa do Royal Ballet

Clique aqui para assistir a O lago dos cisnes em versão completa pela São Paulo Companhia de Dança

Clique aqui para assistir a cena de Beatriz, de O grande circo místico, do Balé Teatro Guaíra, versão 2002

Clique aqui para assistir a trecho 1984, de Alex Soares

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