‘O maestro é – sem dúvida – um grande bailarino!’

por Inês Bogéa 14/06/2023

Nesta estreia da coluna Dança em diálogo, abordaremos a sinergia entre a dança e a música orquestral tocada ao vivo nos espetáculos. Esse é um tema amplo, com muitas possibilidades. Por exemplo: durante a composição coreográfica, a dança e a música podem seguir estruturas rítmicas comuns e cada mudança musical ter um equivalente coreográfico; ou coincidir no tempo e no espaço, sem relação de determinação; a dança pode acontecer no silêncio; a trilha pode ser um elemento incidental, uma paisagem sonora... Já um espetáculo com música ao vivo, é um momento de presença e conexão total entre os artistas, o qual reverbera na plateia, que pode perceber e criar relações únicas nesta experiência multissensorial e instigante.

Para conhecer mais de perto alguns olhares, conversamos com os coreógrafos Miriam Druwe (diretora da Cia. Druw), Ihsan Rustem (diretor da Cie. La Ronde) e Luiz Fernando Bongiovanni (diretor do Balé Guaíra), a fim de desvendarmos juntos um pouco do processo de relação da música na criação coreográfica de cada um e para refletirmos sobre a percepção da música orquestral ao vivo em um espetáculo de dança. Convidamos também os maestros Cláudio Cruz (diretor musical e maestro titular da Orquestra Jovem do Estado de São Paulo e primeiro violino do Quarteto de Cordas Carlos Gomes) e Roberto Tibiriçá (diretor musical e regente titular da Orquestra Sinfônica do Paraná).

Na composição coreográfica há vários caminhos e um mesmo coreógrafo pode experimentar diferentes propostas ao longo da sua carreira. Hoje, Rustem, que toca violino, busca ‘sinais’ dentro da musicalidade intricada e permite que seu ouvido guie o processo. Ele se inspira ao analisar as complexidades das partituras: “amo ‘ver a música’ por meio dos corpos dos bailarinos”. Bongiovanni identifica “uma via de mão dupla: a música contamina as decisões coreográficas, e vice-versa. A música apresenta uma proposta a priori, e a coreografia vai abraçar essa dramaturgia pré-existente ou então tensioná-la e criar contrapontos possíveis”. Para Miriam Druwe, “a dança propõe o próprio ritmo, a própria música interna, e a trilha faz o mesmo percurso”. Ela busca o diálogo entre as duas artes, não pela contagem, mas sim, por “adentrar no contexto profundo das cenas das obras. E o ritmo da música vai sendo encontrado aos poucos; o ritmo que o conteúdo e a pesquisa trazem. Então acontece a coreografia na música e a música na coreografia”. 

Quando plateia, bailarinos e músicos se encontram ao vivo, a experiência é à flor da pele – relacional – e ganha muitas camadas.

Quando plateia, bailarinos e músicos se encontram ao vivo, a experiência é à flor da pele – relacional – e ganha muitas camadas. Todos estão com os sentidos alertas para se encontrarem. Maestros e coreógrafos concordam que é uma experiência do tempo presente, única e desafiadora. E o entendimento dos andamentos, ritmos, pausas e cadências faz diferença para cada performance. 

“É um corpo vivo, tocando um instrumento presente para um grupo de bailarinos presentes. É uma energia incrível, porque ali estão todos os instrumentos, o maestro emocionado no seu momento presente e nunca é igual porque os estados emocionais são sempre diferentes”, fala Miriam e Rustem completa: “Cada noite pode ser bem diferente da anterior... Se o maestro mudar um andamento, ou se o primeiro violinista for substituído. Tudo isso desempenha um papel enorme no resultado do que se ouve. Os bailarinos devem estar verdadeiramente ‘no momento’ ao trabalhar com música ao vivo. Enquanto a memória muscular serve para uma parte, o ouvido guia o restante, e pode ser uma experiência verdadeiramente hipnotizante observar como cada dançarino interpreta o ‘momento’”.

Para Bongiovanni, este momento é “um trabalho de ‘encontro’, de construção de parceria entre os bailarinos, músicos coreógrafos e maestros. Há limites para o movimento do bailarino, como por exemplo, o tempo de saltar e ficar no ar, e limites para o movimento dos músicos, como a velocidade para a mão do violinista, ou de fôlego para uma nota de instrumentos de sopro”.

Para quem vive esta emocionante experiência é um encontro fascinante e vale lembrar que ele se dá por uma conexão sensorial de percepção e escuta ativa, pois o bailarino não vê os músicos, então ele refina a audição e se conecta com a música de corpo inteiro.

Para quem vive esta emocionante experiência é um encontro fascinante e vale lembrar que ele se dá por uma conexão sensorial de percepção e escuta ativa, pois o bailarino não vê os músicos, então ele refina a audição e se conecta com a música de corpo inteiro. Já o músico, no fosso da orquestra, não vê o bailarino, apenas o maestro, que como comenta Bongiovanni “traduz a música em gesto e faz a ponte fundamental entre bailarinos e músicos. O gesto do maestro encaminha andamento e qualidade de som, que é produzido pelos músicos e é então vivificado pelo bailarino no gesto corporal, forma e conteúdo”.

Tibiriçá reflete: “Reger uma orquestra para acompanhar uma companhia de dança não é tão simples! Temos três tipos de regentes: música sinfônica, ópera e balé. As diferenças são: para música sinfônica, ele depende dos músicos e pode expressar sua musicalidade; para ópera, ele depende dos fraseados e fôlego dos cantores; e para o balé, ele precisa estar muito atento aos andamentos das obras, para não prejudicar os passos. Creio que essa categoria é a mais complicada, pois nem sempre acertamos os tempos junto aos bailarinos. Os andamentos são muito instáveis ou oscilam, conforme a interpretação do regente. Porém, a música escrita para balé é sempre muito envolvente e isso cria um clima de êxtase quando tudo dá certo!”. 

Cláudio Cruz diz: “Acompanhar uma companhia de balé ou bailarinos torna nossa atividade ainda mais instigante”. E comenta como a “mímica, o olhar, os movimentos corporais ajudam a criar as interações. Acompanhando os cantores nas óperas aprendemos a sentir, intuir, quase que de uma maneira telepática qual será o fluxo musical! No balé acontece algo parecido. Acompanhar um balé é algo mágico! Realmente instigante, quando se conhecem minimamente os movimentos e se compreende a interação deles com a música, o fraseado, as dinâmicas, todo o discurso musical, acontece algo absolutamente metafísico! Parece que estou exagerando... pode ser, mas a minha profissão se tornou o ‘meu ópio’ há muitos anos! Tenho grande empolgação, acredito que este ingrediente é que me aproxima das pessoas sensitivas, e o balé é exatamente isto, uma arte sensitiva, que nos transporta. Quantas vezes não nos vemos dançando, pulando, gesticulando mentalmente junto com os bailarinos... Procuro fazer a orquestra se ‘infectar’ por esta arte e beleza, desta forma criamos uma unidade – orquestra, solistas, maestro e bailarinos – numa única comunhão!”.

E no final deste encontro para desvendar um pouco da relação da dança com música ao vivo, fica ecoando a frase de Bongiovanni, “O maestro é – sem dúvida – um grande bailarino!”, que junto dos bailarinos da cena, dos músicos, coreógrafos, diretores e de toda a equipe, dança ao vivo para fazer nossa arte ainda mais presente.

[Alguns dos artistas citados nesse texto estão nas programações deste ano: Ihsan Rustem acaba de apresentar a sua coreografia Inacabada, em colaboração com o elenco, com o Balé da Cidade de São Paulo no Theatro Municipal de São Paulo; Luiz Fernando Bongiovanni apresenta Romeu e Julieta com o Balé Teatro Guaíra e a Orquestra Sinfônica do Paraná, sob regência de Marcos Arakaki, nos dias 30 de junho e 1º e 2 de julho, no Teatro Guaíra, em Curitiba; e a São Paulo Companhia de Dança e Orquestra do Theatro São Pedro apresentam a coreografia Di, de Miriam Druwe, com a música Choro nº 6 de Villa-Lobos, sob regência de Cláudio Cruz, entre os dias 17 a 20 de agosto, no Theatro São Pedro, São Paulo.]

Cena de ‘Di’, de Miriam Druwe, produção da São Paulo Companhia de Dança (divulgação, Charles Lima)
Cena de ‘Di’, de Miriam Druwe, produção da São Paulo Companhia de Dança (divulgação, Charles Lima)
Cena de ‘Inacabada’ de Ihsan Rustem, com o Balé da Cidade de São Paulo (divulgação, Rafael Salvador)
Cena de ‘Inacabada’ de Ihsan Rustem, com o Balé da Cidade de São Paulo (divulgação, Rafael Salvador)
Cena de ‘Romeu e Julieta’, de Luiz Fernando Bongiovanni, produção Teatro Guaíra (divulgação)
Cena de ‘Romeu e Julieta’, de Luiz Fernando Bongiovanni, produção Teatro Guaíra (divulgação, Maringas Maciel)

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.