Nesta estreia da coluna Dança em diálogo, abordaremos a sinergia entre a dança e a música orquestral tocada ao vivo nos espetáculos. Esse é um tema amplo, com muitas possibilidades. Por exemplo: durante a composição coreográfica, a dança e a música podem seguir estruturas rítmicas comuns e cada mudança musical ter um equivalente coreográfico; ou coincidir no tempo e no espaço, sem relação de determinação; a dança pode acontecer no silêncio; a trilha pode ser um elemento incidental, uma paisagem sonora... Já um espetáculo com música ao vivo, é um momento de presença e conexão total entre os artistas, o qual reverbera na plateia, que pode perceber e criar relações únicas nesta experiência multissensorial e instigante.
Para conhecer mais de perto alguns olhares, conversamos com os coreógrafos Miriam Druwe (diretora da Cia. Druw), Ihsan Rustem (diretor da Cie. La Ronde) e Luiz Fernando Bongiovanni (diretor do Balé Guaíra), a fim de desvendarmos juntos um pouco do processo de relação da música na criação coreográfica de cada um e para refletirmos sobre a percepção da música orquestral ao vivo em um espetáculo de dança. Convidamos também os maestros Cláudio Cruz (diretor musical e maestro titular da Orquestra Jovem do Estado de São Paulo e primeiro violino do Quarteto de Cordas Carlos Gomes) e Roberto Tibiriçá (diretor musical e regente titular da Orquestra Sinfônica do Paraná).
Na composição coreográfica há vários caminhos e um mesmo coreógrafo pode experimentar diferentes propostas ao longo da sua carreira. Hoje, Rustem, que toca violino, busca ‘sinais’ dentro da musicalidade intricada e permite que seu ouvido guie o processo. Ele se inspira ao analisar as complexidades das partituras: “amo ‘ver a música’ por meio dos corpos dos bailarinos”. Bongiovanni identifica “uma via de mão dupla: a música contamina as decisões coreográficas, e vice-versa. A música apresenta uma proposta a priori, e a coreografia vai abraçar essa dramaturgia pré-existente ou então tensioná-la e criar contrapontos possíveis”. Para Miriam Druwe, “a dança propõe o próprio ritmo, a própria música interna, e a trilha faz o mesmo percurso”. Ela busca o diálogo entre as duas artes, não pela contagem, mas sim, por “adentrar no contexto profundo das cenas das obras. E o ritmo da música vai sendo encontrado aos poucos; o ritmo que o conteúdo e a pesquisa trazem. Então acontece a coreografia na música e a música na coreografia”.
Quando plateia, bailarinos e músicos se encontram ao vivo, a experiência é à flor da pele – relacional – e ganha muitas camadas.
Quando plateia, bailarinos e músicos se encontram ao vivo, a experiência é à flor da pele – relacional – e ganha muitas camadas. Todos estão com os sentidos alertas para se encontrarem. Maestros e coreógrafos concordam que é uma experiência do tempo presente, única e desafiadora. E o entendimento dos andamentos, ritmos, pausas e cadências faz diferença para cada performance.
“É um corpo vivo, tocando um instrumento presente para um grupo de bailarinos presentes. É uma energia incrível, porque ali estão todos os instrumentos, o maestro emocionado no seu momento presente e nunca é igual porque os estados emocionais são sempre diferentes”, fala Miriam e Rustem completa: “Cada noite pode ser bem diferente da anterior... Se o maestro mudar um andamento, ou se o primeiro violinista for substituído. Tudo isso desempenha um papel enorme no resultado do que se ouve. Os bailarinos devem estar verdadeiramente ‘no momento’ ao trabalhar com música ao vivo. Enquanto a memória muscular serve para uma parte, o ouvido guia o restante, e pode ser uma experiência verdadeiramente hipnotizante observar como cada dançarino interpreta o ‘momento’”.
Para Bongiovanni, este momento é “um trabalho de ‘encontro’, de construção de parceria entre os bailarinos, músicos coreógrafos e maestros. Há limites para o movimento do bailarino, como por exemplo, o tempo de saltar e ficar no ar, e limites para o movimento dos músicos, como a velocidade para a mão do violinista, ou de fôlego para uma nota de instrumentos de sopro”.
Para quem vive esta emocionante experiência é um encontro fascinante e vale lembrar que ele se dá por uma conexão sensorial de percepção e escuta ativa, pois o bailarino não vê os músicos, então ele refina a audição e se conecta com a música de corpo inteiro.
Para quem vive esta emocionante experiência é um encontro fascinante e vale lembrar que ele se dá por uma conexão sensorial de percepção e escuta ativa, pois o bailarino não vê os músicos, então ele refina a audição e se conecta com a música de corpo inteiro. Já o músico, no fosso da orquestra, não vê o bailarino, apenas o maestro, que como comenta Bongiovanni “traduz a música em gesto e faz a ponte fundamental entre bailarinos e músicos. O gesto do maestro encaminha andamento e qualidade de som, que é produzido pelos músicos e é então vivificado pelo bailarino no gesto corporal, forma e conteúdo”.
Tibiriçá reflete: “Reger uma orquestra para acompanhar uma companhia de dança não é tão simples! Temos três tipos de regentes: música sinfônica, ópera e balé. As diferenças são: para música sinfônica, ele depende dos músicos e pode expressar sua musicalidade; para ópera, ele depende dos fraseados e fôlego dos cantores; e para o balé, ele precisa estar muito atento aos andamentos das obras, para não prejudicar os passos. Creio que essa categoria é a mais complicada, pois nem sempre acertamos os tempos junto aos bailarinos. Os andamentos são muito instáveis ou oscilam, conforme a interpretação do regente. Porém, a música escrita para balé é sempre muito envolvente e isso cria um clima de êxtase quando tudo dá certo!”.
Cláudio Cruz diz: “Acompanhar uma companhia de balé ou bailarinos torna nossa atividade ainda mais instigante”. E comenta como a “mímica, o olhar, os movimentos corporais ajudam a criar as interações. Acompanhando os cantores nas óperas aprendemos a sentir, intuir, quase que de uma maneira telepática qual será o fluxo musical! No balé acontece algo parecido. Acompanhar um balé é algo mágico! Realmente instigante, quando se conhecem minimamente os movimentos e se compreende a interação deles com a música, o fraseado, as dinâmicas, todo o discurso musical, acontece algo absolutamente metafísico! Parece que estou exagerando... pode ser, mas a minha profissão se tornou o ‘meu ópio’ há muitos anos! Tenho grande empolgação, acredito que este ingrediente é que me aproxima das pessoas sensitivas, e o balé é exatamente isto, uma arte sensitiva, que nos transporta. Quantas vezes não nos vemos dançando, pulando, gesticulando mentalmente junto com os bailarinos... Procuro fazer a orquestra se ‘infectar’ por esta arte e beleza, desta forma criamos uma unidade – orquestra, solistas, maestro e bailarinos – numa única comunhão!”.
E no final deste encontro para desvendar um pouco da relação da dança com música ao vivo, fica ecoando a frase de Bongiovanni, “O maestro é – sem dúvida – um grande bailarino!”, que junto dos bailarinos da cena, dos músicos, coreógrafos, diretores e de toda a equipe, dança ao vivo para fazer nossa arte ainda mais presente.
[Alguns dos artistas citados nesse texto estão nas programações deste ano: Ihsan Rustem acaba de apresentar a sua coreografia Inacabada, em colaboração com o elenco, com o Balé da Cidade de São Paulo no Theatro Municipal de São Paulo; Luiz Fernando Bongiovanni apresenta Romeu e Julieta com o Balé Teatro Guaíra e a Orquestra Sinfônica do Paraná, sob regência de Marcos Arakaki, nos dias 30 de junho e 1º e 2 de julho, no Teatro Guaíra, em Curitiba; e a São Paulo Companhia de Dança e Orquestra do Theatro São Pedro apresentam a coreografia Di, de Miriam Druwe, com a música Choro nº 6 de Villa-Lobos, sob regência de Cláudio Cruz, entre os dias 17 a 20 de agosto, no Theatro São Pedro, São Paulo.]
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