Remontagem, adaptação, releitura e criação: muitos modos de fazer dança

por Marcela Benvegnu 14/07/2023

Remontagem, adaptação, releitura e criação são temas (muito) pouco discutidos e nominados. O que é essa tal de remontagem? Qual é o conceito de uma releitura? Fato é que muitas vezes, as palavras são usadas por conveniência, sem conhecermos o seu sentido aplicado à dança.

Entre a criação e a adaptação, por exemplo, temos “Deep Blue Sea” (2021) criada por Bill T. Jones para a The Bill T. Jones/Arnie Zane Company, que gira em torno da interação entre identidades individuais e de grupo – com um elenco de cem dançarinos convidados da comunidade – e reflete as tensões entre pertencer (ou não) a um grupo, os sentimentos de isolamento e as incertezas que os tempos de divisão política nos trazem. 

O ambiente visual é assinado pelo arquiteto Liz Diller em colaboração com Peter Nigrini, Robert Wierzel e Liz Prince e a trilha sonora é uma composição original de Nick Hallett. No ano seguinte da sua criação, Jones fez uma adaptação da obra que se inspira em dois textos com mais de cem anos de diferença: “Moby-Dick” (1851), de Melville, e o discurso “I Have a Dream” (1963), de Martin Luther King Jr., renomeando-a de “What Problem?”. 

Para mim uma criação começa sempre com uma pergunta e a gente segue procurando a resposta com outras questões (Bill T. Jones)

“Para mim uma criação começa sempre com uma pergunta e a gente segue procurando a resposta com outras questões. Como será essa experiência? Como vamos preencher o espaço? Qual o sentido do movimento? Como eles irão se comportar no espaço? Como será a forma? Como habitamos os gestos para transformá-los em linguagem? Como será a música? E com as respostas vamos dando corpo à criação, pela imaginação”, fala o coreógrafo, que para a criação de “Deep Blue Sea” partiu da pergunta: “Existe um nós? Quem somos nós?”. 

Além do novo nome, a adaptação ganhou, consequentemente, novas adaptações, e algumas delas chegam ao palco da 40ª edição do Festival de Dança de Joinville, no Brasil, este mês. No lugar dos cem dançarinos/membros da comunidade, 25 participantes – entre 18 e 70 anos – selecionados via edital, irão participar da obra, se unindo a companhia – que chega ao país com 9 bailarinos, 4 músicos e o próprio Jones.

“Nesta adaptação mantive a linguagem coreográfica do elenco, ou seja, o modo como os artistas se movem, mas redesenhei as projeções. Também me permiti fazer outras perguntas e me debruçar sobre novas questões como: a democracia, as questões raciais e se temos ou não um senso de comunidade. O número de pessoas externas que participam da cena também é adaptável a cada lugar – o que muda completamente a obra – sem alterar a sua construção poética”, conta Jones, que também é diretor artístico do New York Lives Arts.

Se na adaptação, temos a chance de mudar, mexer e reajustar a obra para um elenco, na remontagem a fidelidade é o componente mais importante. Neste contexto é possível citar “LeeLa”, criada pela americana Noa Wertheim, diretora artística e cofundadora da israelense Vertigo Dance Company, que foi remontada para a Cia. Jovem do Teatro Bolshoi. A peça é uma coprodução entre o Instituto Festival de Dança de Joinville e a Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, sobre música de Ran Bagno, figurinos assinados pela própria Noa, iluminação de Dani Fishof e cenografia de Ram Katzir.

É o jogo dos deuses, do cosmo, da realidade ilusória. É como pensar nas nossas tentações, no que queremos, e se isso nos faz bem, se alimenta o nosso lado espiritual ou material (Noa Wertheim)

“LeeLa” significa, em sânscrito, peça divina, uma existência na qual os humanos são meros peões. “É o jogo dos deuses, do cosmo, da realidade ilusória. É como pensar nas nossas tentações, no que queremos, e se isso nos faz bem, se alimenta o nosso lado espiritual ou material. Para que lado vamos?”, fala a coreógrafa. 

“Remontar essa obra para os bailarinos brasileiros foi maravilhoso. Adoramos trabalhar com eles. Dois dos meus intérpretes – Daniel Costa e Korina Fraiman – foram ao Brasil especialmente para este trabalho e acompanhei parte dos ensaios de modo online”, conta Noa. “A essência da obra está lá, permanece, é fiel ao trabalho original. Eles têm formação clássica e estamos falando de uma coreografia com um estilo moderno, que trabalha o peso do centro do corpo e os pés de forma diferente. Eu aceito as diferenças, eles são jovens, têm almas jovens e não quero que sejam cópias. Quero que entendam a linguagem da Vertigo, mas isso leva tempo. Eles têm uma energia fresca, séria. Tem funcionado muito bem”, fala Noa.

“A singularidade das remontagens da dança reside no fato de que, para permanecerem vivas, cada coreografia deve ser não apenas apreciada pelo público, mas também dançada por outras companhias. É por meio dessa conexão que grandes clássicos mundiais do balé, como ‘O lago dos cisnes’ e, principalmente, ‘Giselle’, chegaram até os dias de hoje”, fala Pavel Kazarian, diretor da Cia. Jovem do Bolshoi. “A Vertigo é uma companhia de maturidade artística notável, o que torna ainda mais valiosa a oportunidade de convivência entre eles e os jovens bailarinos da Cia. do Bolshoi Brasil”, completa. 

O padrão de tempo para uma remontagem internacional, depois que questões como a compra dos direitos de execução, contratos, seleção de remontadores, logística de voos, mapas de luz, figurino, entre outras, são resolvidas, gira em torno de cinco semanas: da escolha do elenco à estreia. A obra sempre recebe atenção da fundação ou da companhia detentora dos direitos, para validações, trocas de elencos e outras necessidades, a fim de garantir que a autoria, a qualidade e o padrão da remontagem sejam sempre avaliados, mantendo, assim, a essência e a originalidade da coreografia. 

Impossível falar de releituras na dança sem pensar em Mats Ek e seus clássicos revisitados como “Giselle” (1982), “O lago dos cisnes” (1987) e “Carmen” (1992). Ele é um coreógrafo sueco que quebrou a linha da tradição clássica propondo novos modos de olhar para ela. Foi bailarino do Cullberg Ballet – companhia criada pela sua mãe, Birgit Cullber (1908-1999) –, do Ballett der Deutschen Oper am Rhein, em Düsseldorf, e coreógrafo e bailarino associado do Nederlands Dans Theater, na Holanda. Dirigiu o Cullberg por 15 anos e trouxe à dança uma nova perspectiva. Em 2006 recebeu o Benois de la Danse, prêmio que consagra os maiores da área da dança no mundo. 

Todas essas histórias são baseadas em contos de fadas e na minha releitura posso explorar muito mais as nuances e contrastes que cada uma dessas obras tem (Mats Ek)

Em entrevista a esta autora, em 2018, ele disse: “Tudo começou quando eu dançava no Ballett der Deutschen Oper am Rhein, em Düsseldorf, na Alemanha. Eu via todos aqueles clássicos esgotados e as obras contemporâneas que não tinham tanto sucesso assim… Até que um dia vi o John Neumeier, diretor do Balé de Hamburgo, criando uma versão de ‘O lago dos cisnes’ em que ele colocava um trecho da obra tradicional ao lado de um pedaço da sua criação mais moderna. Depois de um tempo, falei: mas pode ser tudo moderno! Aí comecei a criar a releitura dessas obras. Com certeza, minha virada de carreira foi com ‘Giselle’. Todas essas histórias são baseadas em contos de fadas e na minha releitura posso explorar muito mais as nuances e contrastes que cada uma dessas obras tem”. 

É com a perspectiva de Ek, que o coreógrafo espanhol Goyo Montero chega ao Brasil para a sua segunda criação para a São Paulo Companhia de Dança, sob direção de Inês Bogéa. A ele caberá a releitura de uma das mais icônicas obras estreladas por Vaslav Nijinsky (1889-1050) em 1911, com música de Igor Stravinsky (1882-1971) e coreografia de Michel Fokine (1880-1942): “Petroushka” (2023), uma história de amor e ciúme entre três bonecos que ganham vida.

Nesta releitura inédita, os bonecos – Petroushka, Boneca e Lutador – ganham novos contornos por meio de infláveis gigantes e marionetes e revelam uma história recheada de amor, morte, alegria, tristeza, rejeição e manipulação. Na história original, Petroushka ama a Boneca, mas ela prefere o Lutador, que mata Petroushka, cujo fantasma aparece quando a noite cai. 

Fazer um balé com música de Stravinsky é uma grande responsabilidade. A obra tem uma imensa representatividade para a história da dança. Acho que só podemos realizar a releitura de uma peça como esta quando temos algo novo para contar (Goyo Montero)

“Fazer um balé com música de Stravinsky é uma grande responsabilidade. A obra tem uma imensa representatividade para a história da dança. Acho que só podemos realizar a releitura de uma peça como esta quando temos algo novo para contar. E acredito que tenha chegado a uma releitura que respeita a originalidade da obra, mas traz os aspectos da contemporaneidade para cena”, fala o coreógrafo. 

Montero irá reler a história a partir de uma ideia surrealista, na qual as mentes – perturbadas ou não – vivem em um universo que se esqueceu de como é estar em comunidade e que está em constante manipulação. “Os três personagens principais se divertem com eles mesmos, criam suas próprias realidades. São muitas camadas, com diferentes pontos de vista, literalmente, que são trazidas à cena pela ambientação do cenário, por meio de bonecos infláveis gigantes, pequenos e médios e marionetes que mudam a nossa percepção de olhar. É um teatro dentro de outro teatro, para que eu possa contar essa história de diferentes perspectivas”, afirma Montero. 

O coreógrafo ressalta que os figurinos e o cenário também o ajudam a recontar essa história. “Temos um cenário surrealista. Colchões que ora se configuram como cama, ora como sala, criam espaços restritos e configuram o espaço cênico. Além disso, temos luzes penduradas que ora trazem um clima de festa, ora de um sanatório. As cores revelam as sensações e os sentimentos da cena”, fala. “A história é do século passado e hoje temos um novo modo de comunicar as ideias, de nos conectarmos com o público. Adoro contar histórias e, assim, pensar novos modos fazê-las”, completa o coreógrafo. 

Seja remontagem, adaptação, releitura e criação: são muitos modos de fazer dança, cada um com sua singularidade, seja pelo olhar do criador, pelas infinitas possibilidades da cena, ou mesmo, pelo tempo em que vivemos.

AGENDA
[Alguns dos artistas citados nesse texto estão nas programações deste mês e ano e alguns trabalhos citados podem ser vistos em formato digital: 

“What Problem”, de Bill T. Jones, com a The Bill T. Jones/Arnie Zane Company
Festival de Dança de Joinville. 17 de julho, no Centreventos Cau Hansen, em Joinville (SC). 

“LeeLa”, de Noa Wertheim, com a Cia. Jovem do Bolshoi
 Festival de Dança de Joinville. 19 de julho, no Teatro Juarez Machado, em Joinville (SC) 

“Petroushka”, de Goyo Montero, estreia com a São Paulo Companhia de Dança
De 6 a 8 de outubro no Sesc Pinheiros, em São Paulo (SP).]

PARA ASSISTIR

Clique aqui para ver um trecho de “What a Problem”, com a Bill T. Jones/ Arnie Zane Company

Clique aqui para ver “Giselle”, de Mats Ek, com a Opera de Paris

Clique aqui para ver um trecho de “LeeLa”, com a Vertigo Dance Company

 

LeeLa, com a Cia. Bolshoi Brasil (divulgação)
LeeLa, com a Cia. Bolshoi Brasil (divulgação)

 

Cena de ‘What Problem’, de Bill T. Jones (divulgação)
Cena de ‘What Problem’, de Bill T. Jones (divulgação)

 

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