Vamos apreciar um desfile de escola de samba?

por Redação CONCERTO 25/02/2025

Por Yaskara Manzini [Yaskara Manzini é doutora e mestre em Artes pela Unicamp, com pós-doutorado em Artes Cênicas pela Unesp. Atua como coreógrafa de escolas de samba desde 2001. Atualmente é coreógrafa das escolas de samba Tom Maior e Lavapés Pirata Negro.]

O carnaval está chegando e as escolas de samba têm feito seus ensaios técnicos em diversos lugares e sambódromos do Brasil, para que possam se preparar para a apresentação única que decidirá se a sua escola é a melhor do ano. Desde a oficialização dos desfiles das escolas de samba (no Rio de Janeiro em 1932 e em São Paulo, em 1968), as disputas carnavalescas das escolas de samba são sempre comentadas e criticadas. Mas quais são os parâmetros para analisar e julgar esse tipo de manifestação artística? A técnica, a alegria, a elegância?

Na cidade de São Paulo, os desfiles das escolas de samba são julgados a partir de três módulos: os aspectos musicais, visuais e a dança.

O módulo musical é composto por harmonia, samba de enredo e bateria. A harmonia é a voz da escola, nesse quesito é julgado o entrosamento entre a voz da escola e bateria, a clareza e a constância do canto. No quesito samba de enredo são avaliadas letra, melodia e execução. A primeira tem a ver com a narrativa do enredo, ou seja, como a letra do samba de enredo descreve o tema apresentado pela agremiação. A melodia relaciona-se com os desenhos musicais, na maneira com que a letra é adaptada para a melodia do samba, e, por fim, a bateria, o coração da escola de samba, que é julgada a partir da sustentação do samba ao longo do desfile, pela qualidade na execução do samba, em seu equilíbrio instrumental, pela afinação dos naipes de instrumentos e pela performance, o desempenho para executar as bossas (ou convenções) na pista. Alguns mestres de bateria têm inserido em suas baterias pequenas partituras de movimentos ao executarem suas bossas.

O módulo visual é constituído por três quesitos: o enredo, que é o tema do desfile e sua narrativa; a fantasia, que é a narrativa em forma de roupa; e a alegoria, associada aos carros alegóricos. Para avaliar o enredo é necessário notar se a narrativa proposta foi realizada no desfile de maneira clara, coesa e coerente (realização da narrativa), o roteiro, que considera a montagem da escola ala por ala, e a leitura plástica do enredo, ligada ao significado das fantasias e alegorias. O quesito fantasia considera uniformidade na confecção das fantasias de cada ala, o acabamento e sua durabilidade. Já o tópico realização aprecia os aspectos de volume das roupas, cores, harmonia das formas e materiais usados. O quesito alegoria é avaliado em relação à execução, realização e acabamento. A execução considera a relação entre os croquis apresentados na pasta para os jurados e o que é apresentado na pista; a realização analisa a variação entre formas e cores das alegorias, bem como a proporção e volumetria das esculturas. A análise do acabamento considera se há falhas na pintura, objetos esquecidos sobre alegorias, ferragens expostas, esculturas danificadas etc. 

Ala das baianas no ensaio técnico da Tom Maior (divulgação)
Ala das baianas no ensaio técnico da Tom Maior (divulgação)

A DANÇA E O CARNAVAL

O módulo dança é composto por comissão de frente, mestre-sala & porta-bandeira e evolução. Antes de entrarmos na explicação desses três quesitos, não custa relembrar que o samba é rei dos terreiros, dos morros, e que sua formação, enquanto instituição escola de samba, e suas danças são construídas a partir do conhecimento periférico, negro, não hegemônico. O desfile de escolas de samba é uma manifestação que emerge no Rio de Janeiro, em fins do século XIX, e que sofre influência de outras manifestações populares como ranchos e cordões carnavalescos.

Esses primeiros desfiles trazem elementos de danças populares como o jongo, congadas, reinados, samba de roda e danças de orixás. O jornalista José Carlos Rego, ao tecer paralelos entre as danças de orixás e o samba, aponta em sua obra “Dança do Samba: exercício de prazer”, que o “treme treme”, movimento tradicional do samba, equivale ao jicá de Oxum e que a postura das baianas tem sua origem na dança de Oxalufan.

É impossível negar essas relações, pois sabemos que foram os terreiros de candomblé que protegiam os sambistas da polícia, quando andar com um pandeiro, atabaque ou jogar capoeira dava cadeia, por vadiagem. Nomes como Tia Ciata, Bebiana, Carmen da Xibuka são lembrados até hoje como grandes lideranças e articuladoras das comunidades negras do samba carioca. Assim, em 1930, aparece a ala das baianas nos desfiles de escolas de samba, como uma homenagem a essas lideranças femininas pretas e periféricas.

A ala das baianas é um agrupamento de mulheres que desfilam com roupas e fantasias que lembram as roupas das ialorixás do candomblé. Dentro das escolas de samba, são conhecidas como “as mães do samba”, o útero fecundo da escola. Junto com a comissão de frente, mestre-sala e porta-bandeira não dançam samba nos desfiles! As baianas têm um papel fundamental nos rituais e festas dentro da cultura do samba. Elas atuam nos rituais defumando, jogando água de cheiro no ambiente, benzendo, assoprando pós e oferecendo bebidas entre outras funções ritualísticas. Sua dança remete aos giros dos pés de dança de orixá, exaltada nos versos de muitos sambas-alusivos, como este do G.R.C.E.S. Mocidade Alegre:

      Gira baiana bonita…
      Balança o meu coração
      É nesse embalo que eu vou, paixão

      Gira baiana e vem ver…
      O povo de bem com a vida
      Com a Mocidade na avenida!!! [...]

      Que maravilha, vem nessa onda
      É tão bonito o seu bailar
      Gira baiana colorida
      Nessa festa popular 

A cadência dos seus giros é marcada pelos braços que pulsam no ritmo dos surdos da bateria. Suas roupas nos ritos de quadra são réplicas de roupas de terreiro, com turbante, pano de costa, camisa, saia longa e armada modelo colonial, o colo repleto de fios de conta e pulseiras como adornos. Nos desfiles, suas fantasias remetem às roupas de terreiro, mas possuem camadas de adereços, cores e decorações indicam o enredo do desfile. Como as roupas são muito pesadas e grandes, a dança fica limitada aos giros e pés de dança de orixá. 

Em depoimento colhido por Urbano, em 1997, Dona Zefa (Josefa Maria da Silva, 1916-2006), ex-integrante da Escola Lavapés e da Camisa Verde e Branco, conta:

Aí eu fui para a ala das baianas. Eu me lembro que as baianas tinham uma armação, era um arame duro, que se fazia um aro e prendia na barra da saia. Não punha aquele do meio, ficava esquisito, a roupa só armava ali embaixo. Aquele canudo, era engraçado. Na cabeça a gente tinha um turbante com aquele laço bonito. Não era chapéu não, era um laço como usam as mães de santo do candomblé. (Urbano, 2012, p. 111)

A ala das baianas não é avaliada nos desfiles. É uma ala que possui respeito e ancestralidade dentro do contexto histórico, político, religioso e social das escolas. Entretanto, a escola de samba para desfilar necessita cumprir algumas exigências em relação a essa ala, entre as quais: possuir minimamente 30 componentes desfilando. 

Ensaio técnico da Comissão de frente da Mocidade Alegre (divulgação, Adriano Moraes)
Ensaio técnico da Comissão de frente da Mocidade Alegre (divulgação, Adriano Moraes)

Dentro do quesito dança, outra ala que não samba é a comissão de frente. Isso se dá devido a própria história do aparecimento da comissão de frente, tanto em relação ao papel do baliza, que abria os desfiles dos cordões paulistanos – que, nas brigas com grupos rivais, por vezes executava malabarismos com a batuta, por outras lutava com ela –, quanto na relação mais cortês, aristocrática e diplomática das comissões de destaque das sociedades carnavalescas. Posteriormente, esses atributos foram absorvidos pelas escolas de samba e a diretoria ou convidados ilustres, formada por comerciantes e profissionais liberais, dos bairros onde se localizavam as escolas, vinham à frente dos cortejos, vestidos com roupas sociais como casaca, fraque e cartola. Sob essa perspectiva, o samba não foi dançado pela burguesia, que dialogava com a direção das escolas. Por isso, seus componentes não sambam. 

Ao longo dos anos, além de estabelecer a relação de cortesia com o público, a comissão de frente passou a representar um tema dentro do enredo. Atualmente, a ala apresenta um espetáculo dentro do espetáculo e cada vez mais exige bailarinos e atores profissionais para compor seu elenco. A esse respeito Pérsio B. J. Silveira, ex-componente de comissão de frente da Camisa Verde e Branco afirma: “Esforçamo-nos para sermos muito mais que meros corpos para a apresentação, mas também cabeças pensantes e conscientes sobre a diáspora negra” (Manzini, 2012, p.110).

A comissão de frente é a menor ala de um desfile, pode apresentar-se com um mínimo de cinco integrantes e o máximo de quinze integrantes visíveis. Quem avalia as comissões de frente tem de se atentar para três conceitos: fundamento, plástica artística e acabamento. O fundamento é o alicerce da comissão de frente, tem a ver com os primórdios da ala. É composto de duas ações: apresentar a escola e saudar o público. A comissão de frente precisa despertar a empatia no público, preparando-o para o desfile. Costuma-se dizer que, para ser um excelente coreógrafo de comissão de frente, deve-se saber inserir os fundamentos, sem quebrar a dramaturgia criada para a ala. Uma comissão de frente que não realiza o fundamento torna-se ala coreografada. A comissão de frente também não tem a obrigação de cantar nos desfiles.

O segundo item de balizamento é a plástica artística, ligada à proposta cênica apresentada, aos espaçamentos coreográficos e à qualidade da execução de dança ou cena pela ala. O acabamento remete aos figurinos e alegorias chamadas tripé, os julgadores devem se atentar ao projeto de figurinos e se na realização dos mesmos não se perdeu o conceito e o acabamento da fantasia (rasgos não intencionais, durabilidade para a pista, entre outros).

Aqui, se faz necessário um adendo: Todas as escolas de samba entregam para a Liga Independente das Escolas de Samba uma espécie de livro de montagem do desfile onde constam inúmeros dados, desde o hino da escola de samba e foto de sua bandeira, até fotos de fantasias e sapatos que serão usados no desfile. Então, cada julgador da comissão de frente, tem acesso a informações que o público não possui, como a apresentação da dramaturgia da ala, seu processo de criação, figurinos, maquiagem, alegorias entre outros dados.

Ensaio técnico da Tom Maior (divulgação)
Ensaio técnico da Tom Maior (divulgação)

O quesito mestre-sala e porta-bandeira, possui alguns aspectos obrigatórios de dança, para a manutenção da tradição, além do fundamento do bailado do casal: apresentar o pavilhão oficial de sua escola. O casal possui funções dentro do desfile, a porta-bandeira: 

Tem a função de ostentar, conduzir e apresentar o Pavilhão da sua Escola de Samba, que deve estar sempre desfraldado no momento do giro. Ela deve se apresentar com gestos elegantes, simpáticos, suaves e leves [...] Deverá demonstrar simpatia ao apresentar o seu pavilhão e estar perfeitamente integrada na execução da dança com o Mestre Sala (Liga-SP, 2020).
 
E o mestre-sala:

Tem a função de ser o guardião do pavilhão, ao mesmo tempo deve apresentá-lo no transcorrer do desfile. A sua dança em torno da porta bandeira tem a finalidade de protegê-la, com posturas elegantes, deve conter gestos cortes [sic] e suaves que demonstrem reverências à porta bandeira, com passos tradicionais e giros, meneios, mesuras, meias-voltas e torneadas. Deverá apresentar o pavilhão e executar movimentos completos de proteção do pavilhão nos sentidos horários e anti-horários não necessariamente na mesma sequência e desenvolver o bailado de movimentos de pernas que remete às tradições da capoeira (Liga-SP, 2020).

O mestre-sala deve utilizar um dos três instrumentos que compõem sua performance: bastão, leque ou lenço. O primeiro remete aos cetros de reis, mas também às balizas dos cordões carnavalescos que o usavam para defenderem seus estandartes; o segundo, utilizado como abanador nas cortes (europeias), também tem a função de afastar energias negativas; e o terceiro, o lenço de seda, que além de aludir à composição de trajes sociais, protege do corte de navalhas trazendo um resquício de quando os carnavais eram decididos por embates físico entre as agremiações, daí o ditado “navalha não corta seda”.

O quesito mestre-sala & porta-bandeira é analisado considerando cinco tópicos: coreografia e apresentação – ligado aos movimentos obrigatórios e à ocupação do espaço delimitado para o casal; qualidade técnica dos movimentos do casal – relação com o par; entrosamento durante a apresentação – movimento; adequação ao ritmo e uso de dinâmicas diversas na apresentação; e integridade das fantasias. Sobre o quesito Mestre Ednei Pedro Mariano, presidente da Associação de Mestres-Salas e Porta-Bandeiras e Estandartes do Estado de São Paulo, explica que a:

[...] obrigatoriedade dos movimentos do giro de proteção do mestre-sala, o giro frenético de porta-bandeira. Quando ela gira, o pavilhão tem que desfraldar. O jogo frenético de pernas do mestre-sala. Tudo isso a gente conseguiu colocar no critério de avaliação do casal (Manzini 2023, p.139).

É interessante observar que embora o manual do julgador padronize alguns tipos de ações no bailado do casal, existe a abertura para uma das grandes premissas da dança do samba: o improviso. A improvisação dentro do samba também é chamada de “dar a letra”, “versar” e desde que esta autora começou a compreender a cultura das escolas de samba, essas expressões chamaram atenção, pois referenciam um discurso do corpo no samba, um discurso pessoal e singular, que é criado por cada sambista. O que nos leva a pensar no quesito evolução.

Ensaio técnico das Baianas da Mocidade Alegre (divulgação, Felipe Araújo)
Ensaio técnico das Baianas da Mocidade Alegre (divulgação, Felipe Araújo)

Evolução “é o deslocamento progressivo e ritmado da Escola de Samba com entrosamento entre a dança e o ritmo da bateria em um conjunto harmônico, onde os componentes se manifestam com empolgação, desenvoltura e expressões corporais diversas, mas sem perder a característica própria de um desfile de Escola de Samba”, segundo o Manual do Julgador 2025 da Liga das Escolas de Samba. 

No quesito são julgadas as alas com danças espontâneas e coreografadas, mas não em relação à coreografia realizada ou sua execução técnica, mas ao deslocamento progressivo das alas coreografadas no desfile. Para julgamento do quesito considera-se: a variação de velocidade – ligado ao andamento do cortejo que deve ser contínuo; invasão de alas – tem a ver com ocupação do espaço delimitado para a realização da dança de cada ala; e a expressão corporal dos componentes do desfile. A Liga-SP (2025) define expressão corporal como “o entrosamento da dança dos desfilantes com o ritmo da bateria, com movimentos descontraídos de braços, pernas e quadris, com alegria e animação.”

É nesse quesito que se destacam os e as passistas, as cabrochas e malandros, dançarinos de samba, que além dos movimentos do samba como miudinho, rebolados diversos, ôba, ôbalelê, pá-pum, feitiço, saltinho, pinóquio etc.,  criam suas próprias maneiras de realizar e improvisar movimentos, com muito charme, malícia e elegância, gerando novos movimentos como o “pulo do sapo”, um movimento acrobático que recebe influências do break dance, criado por Carlinhos Café (Carlos Alberto de Souza) que o descreve:

A partir dos deslocamentos comuns ao break me lanço de joelhos no chão, com as canelas e tornozelos contorcidos para fora. Ali no piso, ajoelhado, no compasso das marcações, aciono o corpo para cima numa altura de 30, 40 centímetros, em semicírculos, virando de um lado para outro. Num dos saltos, levanto rápido e recomeço as encenações do break (Rego, 1996, p.89).

A criação, produção e realização de desfiles carnavalescos é complexa, criando uma rede de sambistas, trabalhadores e artistas unidos pelo mesmo ideal. Agora que você, leitor, recebeu as chaves para apreciar um desfile, que tal exercitar sua porção julgador/a e assistir os desfiles ao vivo no sambódromo?


Para saber mais

LIGASP. Manual do Julgador 2025. São Paulo: LIGASP, 2025 (clique aqui para abrir)
Acesso em 15 fev. 2025.

LIGASP. Manual do Julgador 2024. São Paulo: LIGASP, 2024 (clique aqui para abrir)
Acesso em 11 fev. 2025.

LIGASP. Manual do Julgador 2020. São Paulo: LIGASP, 2020 (clique aqui para abrir)
Acesso em 29 out. 2022

MANZINI, Yaskara Donizeti. Mora na filosofia. In MONTEIRO, M.F. & SALGADO, F.K.(orgs.) Tatu tá cavucando. São Paulo: UNESP, e-book, 2024. Pp. 141-160.

_______. Danças Negras na Terra da Garoa: histórias aquilombadas. Revista Brasileira de Estudos em Dança, [S.I.], v.1, n.2, p.122-145, 2023. DOI: 10.58786/rbed.2022.v2.n2.55299. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/rbed/article/view/55299 . Acesso em: 12 fev. 2025. 
_______. “Pra tudo se acabar na quarta-feira”: Aproximações, diálogos e estranhamentos entre carnaval e teatro nas performances da Comissão de Frente. Tese de Doutorado. Campinas: Instituto de Artes/Programa de Pós Graduação em Artes/Universidade Estadual de Campinas, 2012.

REGO, José Carlos. Dança do samba: exercício do prazer. Rio de Janeiro: Aldeia, 1996.

URBANO, Maria Aparecida. Mães do Samba: tias baianas ou tias quituteiras. São Paulo: Clube do Bem Estar, 2012.

Mestre sala Ruhanan Pontes e Porta Bandeira Ana Paula Sgarbi, da Tom Maior (divulgação)
Mestre Sala Ruhanan Pontes e Porta Bandeira Ana Paula Sgarbi, da Tom Maior (divulgação)

 

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