“Rio e São Paulo se complementam na chegada da modernidade”, diz Manoel Corrêa do Lago

por Luciana Medeiros 14/02/2022

Pesquisador fala em entrevista sobre o cenário artístico no Rio de Janeiro e em São Paulo às vésperas da realização da Semana de Arte Moderna

Eventos, referências, datas: ferramentas essenciais para estruturar a memória pessoal e coletiva. São muito úteis – e jornalistas adoram uma data redonda – mas embutem, muitas vezes, a armadilha do reducionismo e do achatamento de todo o processo de construção daquele fato ou acontecimento.

Em 2022, a Semana de Arte Moderna completa cem anos e está sob os holofotes – e na berlinda, ao mesmo tempo – como marco da chegada da modernidade no Brasil. Para muitos, ficou consolidada como um corte cirúrgico entre o “antes” passadista, como se cunhou na época, e um horizonte iluminado e ousado de “novos tempos”. Para outros, criou-se ali uma pretensa rivalidade entre uma São Paulo moderna e um Rio de Janeiro tradicional. 

Não procedem – nem uma afirmação, nem outra. A presença de artistas de vanguarda nos repertórios de brasileiros já vinha desde o início do século XX. E a ideia de complementaridade e de integração entre Rio e São Paulo ganhou muitos adeptos ao longo das últimas décadas. É, por exemplo, a opinião do musicólogo Manoel Corrêa do Lago, que publicou em 2010 o livro O Círculo Veloso-Guerra e Darius Milhaud no Brasil – Modernismo musical no Rio de Janeiro antes da Semana (Ed. Reler), magnífico volume que levou ao público sua tese de doutorado. 

“O subtítulo do meu livro pode passar uma impressão equivocada”, comenta Corrêa do Lago. “Não é a postulação de que o Rio de Janeiro fosse ’mais’ moderno que São Paulo, ou ‘pioneiro’. A verdade é que Rio e São Paulo são absolutamente complementares na chegada da modernidade artística ao Brasil, que não começou com a Semana, mas teve no evento uma culminação e um ponto de gravidade, inclusive porque o Movimento Antropofágico, o Movimento Pau-Brasil começam alguns anos depois de 22.”

A Semana teceu redes de relacionamento muito fecundas. Ali, Villa-Lobos conheceu Mário de Andrade e começou com ele um relacionamento muito frutífero

A Semana certamente inovou nestas plagas ao reunir multilinguagens artísticas, além de trazer o mecenato para o evento, destaca o pesquisador. “E, principalmente, teceu redes de relacionamento muito fecundas. Ali, Villa-Lobos conheceu Mário de Andrade e começou com ele um relacionamento muito frutífero. Mário é o dedicatário do Choros n° 2, teve poemas musicados por Villa, manteve com ele uma correspondência importante. Mário abriu para ele o Brasil profundo. Foi um fermento muito importante.”

Nas primeiras décadas do século XX, pontificavam nos meios da música em São Paulo o extraordinário Luigi Chiaffarelli – criador do Conservatório Musical, professor de Guiomar Novaes, Antonieta Rudge, Sousa Lima, entre muitos –, tocando os impressionistas muito antes que os cariocas o fizessem.

Mas ao Rio, a capital da República, logo chegariam os ventos e as figuras da Europa. “No Rio de Janeiro de 1917 a 1920 acontece muita coisa, como a vinda dos Ballets Russes, embora eles aqui não tenham dançado as peças de Stravinsky, possivelmente pela falta de uma orquestra capaz de executá-las”, relembra Corrêa do Lago. “Arthur Rubinstein, que já era amigo de Stravinsky e Manoel de Falla – fez reduções para piano das obras orquestrais dos dois – fica por aqui um mês inteiro; a grande Vera Janacopoulos chega da Europa nessa época para uma temporada, também trazendo a intimidade com a música de Debussy e Ravel, de Stravinsky e de um jovem Prokofiev.”

E, remetendo à pesquisa de doutorado tornada livro, Corrêa do Lago lembra que, já em 1918, A Sagração da Primavera foi tocada a quatro mãos na casa dos Veloso-Guerra: “Esse fato está registrado no diário de Paul Claudel, embaixador da França no Brasil, que havia trazido no entourage o compositor Darius Milhaud." 

Se São Paulo já via Antonieta Rudge tocando Debussy em 1905, e o Rio tinha Francisco Braga regendo L’Après-Midi d’un Faune em 1908, entre tantas manifestações da tal modernidade, é preciso voltar às palavrinhas: complementaridade das duas metrópoles nesse processo.

“Havia fenômenos pontuais tanto em São Paulo como no Rio. Alguns espetaculares, como o Círculo Veloso-Guerra, além do Instituto Nacional de Música com Braga, Nepomuceno, Oswald, que iluminavam o establishment musical no Rio; e o Chiaffarelli, que era uma potência. Aliás, segundo Rubinstein em suas memórias, as três mais importantes escolas de piano do mundo na época eram o Busoni, o Isidor Philip e o Chiaffarelli. Construíram um caminho.”

Heitor Villa-Lobos, o compositor da semana – “o”, artigo singular –, convidado por Graça Aranha e Ronald de Carvalho, já era 1922 um compositor moderno, senhor da sua técnica e dono de uma linguagem própria. “Não havia ainda se incorporado nele, completamente, o criador que ficaria famoso com os Choros e as Bachianas”, analisa Corrêa do Lago. “Ele apresenta em 1922 obras muito modernas, como o Trio n° 3, as Danças Africanas, mas não eram o topo da vanguarda ainda. É nos anos seguintes que ele dedica o Choros n° 3 ao casal Oswald-Tarsila, o Noneto a Olivia Penteado, mecenas da Semana. Villa-Lobos, a partir daí, começa a ir muito a São Paulo, por exemplo."

Em resumo, a Semana reunia no Municipal de São Paulo o “menos convencional” naquele momento – “não necessariamente o que era a vanguarda mundial”, ressalta Manoel. “Mas não se pode nem deve criticar a Semana pelo que ela não se propunha, de que ali houvesse um ponto de partida para a arte moderna no Brasil”, aponta Corrêa do Lago. “Temos muito o que celebrar da Semana de 22, mas não se pode atribuir a ela uma audácia que não tinha e ela também não primava por um nacionalismo que veio a se cristalizar depois disso. Mas foi um grande ponto de convergência – isso, certamente."

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Villa-Lobos em foto do início dos anos 1920 [Reprodução]
Villa-Lobos em foto do início dos anos 1920 [Reprodução]

 

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