Morreu nesta quarta-feira, aos 84 anos, o pianista brasileiro Arthur Moreira Lima. Ele estava passando por tratamento para um câncer de intestino e morreu em Florianópolis, onde vivia com a família. O velório acontecerá nesta quinta-feira, dia 31, entre 12h e 16h, no Jardim da Paz, em Florianópolis.
Moreira Lima nasceu no Rio de Janeiro em 1940, onde fez sua estreia profissionais aos 8 anos, tocando Mozart com a Orquestra Sinfônica Brasileira. Ele foi aluno de Lúcia Branco, no Brasil, de Marguerite Long, em Paris, e de Rudolf Kehrer, em Moscou.
“Em Moscou, se eu não tivesse estudado lá, eu não teria ‘aparecido’. Naquele tempo, anos 1960, era indispensável para fazer carreira estudar com os grandes formadores. Não fui para lá por motivação política, não. Foi motivação cultural mesmo. O conservatório em Moscou era o mais forte do mundo na época. Tanto que eu tinha uma bolsa também para os Estados Unidos e escolhi Moscou. Eu brincava dizendo que tinha optado pela liberdade”, contou em entrevista de 2014.
Em 1965, conquistou o segundo lugar no Concurso Chopin de Varsóvia, que em sua sétima edição deu o primeiro lugar à argentina Martha Argerich. Durante a competição, ele foi chamado treze vezes ao palco após apresentar a Sonata em sol menor. “A imprensa polonesa elogiou sua técnica, sua compreensão de Chopin e sua sensibilidade”, anotou um despacho da época da agência France Presse, republicado pela imprensa brasileira. “Nos principais jornais poloneses, sua interpretação da Sonata foi considerada inolvidável. E o pianista foi definido como um dos grandes gênios do piano.” Pouco depois, após um recital no Wigmore Hall, de Londres, o jornal The Daily Telegraph, afirmou que Moreira Lima já mostrava àquela altura “um raro e inigualável talento”.
Seus primeiros álbuns logo o colocaram como intérprete de referência da obra de Chopin, à qual se dedicou desde os anos 1970, quando realizou a gravação da obra completa para piano e orquestra do compositor, além de se dedicar à sua obra solo. “Sua interpretação das Polonaises é perfeita, não há outra maneira de dizer”, escreveu um crítico inglês.
Além de Chopin, ele tinha particular interesse na obra de autores como Liszt, Prokofiev ou Villa-Lobos, que registrou no álbum Intérprete brasileiro, de 1977. “Ele usa de sua técnica não como um fim, mas como uma maneira de frasear inteligentemente, de conseguir efeitos raros, apresentado um discurso sonoro claro, nítido, sem nunca esquecer o estilo de cada autor”, escreveu no Estadão o crítico musical Carlos Vergueiro sobre a gravação.
No início dos anos 1980, ele estabeleceu uma parceria com o pianista João Carlos Martins. Se Chopin era a marca de Moreira Lima, Bach havia feito o nome do colega. E os dois foram juntos Nova York para um recital no qual os dois intercalavam prelúdios do Cravo Bem-Temperado e do autor polonês. A imprensa americana publicou na ocasião uma entrevista com os dois.
“Quando interpreto Bach, não posso considerá-lo um grande gênio que precisa ser respeitado com as mãos em prece como em uma igreja”, disse Martins, dando a chave para a compreensão de suas leituras celebradas justamente pelo olhar extremamente pessoal com que se aproximava das partituras do autor. Por outro lado, Moreira Lima, após elogiar o Bach do colega, falou de sua busca pelo que definiu como “equilíbrio possível”, sem cair em extremos.
Em 1981, Moreira Lima lançou o disco Com Licença, um primeiro marco do interesse amplo que tinha com relação à música brasileira. No álbum, ele registrava peças de Pixinguinha, Chiquinha Gonzaga, Elomar e Laércio de Freitas, entre outros autores que, àquela época, não costumavam frequentar o repertório de pianistas clássicos. No mesmo ano, fez uma série de apresentações no Rio de Janeiro dedicadas a choros e tangos de Ernesto Nazareth, ao lado do grupo Época de Ouro e de artistas como o violonista Rafael Rabello.
“O choro é, de certa forma, a alma da música brasileira. E esse envolvimento com a obra de Nazareth me introduziu nesse mundo mágico, imperceptível para quem está imerso na música clássica. Mas ele existe, é muito rico e me ajudou, inclusive, na minha interpretação de música clássica”, afirmou Moreira Lima em depoimento dado em 2022 ao Instituto Moreira Salles.
A relação com a música de Nazareth vinha desde os anos 1960. Um ano depois do Concurso Tchaikovsky, ele fez uma série de recitais em que unia a obra do brasileiro com peças de Chopin. “Com a mesma independência que moveu Moreira Lima a colocar Nazareth entre Schumann, Prokofieff e Chopin, deve-se assinalar aqui que foram essas breves composições as mais comoventes de toda a noite”, destacou o crítico Eurico Nogueira França, no Correio da Manhã, em agosto de 1966, destacando como “altamente louvável a acertada independência de julgamento e a ausência de convencionalismo” na escolha do repertório.
No depoimento ao Instituto Moreira Salles, o pianista relembrou a decisão de unir os autores. “Não tinha nada a ver, do ponto de vista estético, colocar duas pecinhas de Nazareth no meio de um programa pesado como aquele, mas do ponto de vista de importância fazia todo sentido: Nazareth entre os grandes. Acabou sendo um refrigério, algo que o público recebeu com emoção. Estávamos há dois anos na ditadura militar – desde 1964 – e a esquerda ficou assanhadíssima com esse gesto, que foi como um preito à nossa cultura. Uma demonstração de que subdesenvolvido também tem alma, sabe?”
Em 1984, foram lançados discos em que ele interpretava música russa – Tchaikovsky, Rachmaninov e Scriabin – e o Concerto para piano nº 1 de Villa-Lobos, com a Orquestra Sinfônica da URSS regida por Vladimir Fedoseyev. A lista de álbuns do artista chegaria a mais de cinquenta discos. Nos anos 1990, por exemplo, ele lançaria quatro LPs dedicados a Villa-Lobos, com interpretações marcantes de obras como Rudepoema. E manteria o foco na música popular brasileira, fazendo parcerias com Altamiro Carrilho, Nelson Gonçalves, Ney Matogrosso e gravando autores como Caetano Veloso e Tom Jobim.
Também lançou, ainda no final dos anos 1990, um disco dedicado à obra de Astor Piazzolla. “Piazzolla trouxe ao tango, à milonga e a outros gêneros populares, um desenvolvimento cio ponto de vista formal, musical. É um tratamento que tem como característica o aproveitamento dos temas, com contrapontos, fugas, imitação, cânon, todos os elementos formais da música erudita. Piazzolla recolheu seus temas da música de rua, mas desenvolveu-os à maneira da sonata e a singularidade de sua música está neste tratamento”, disse em entrevista de dezembro de 1997 à Revista CONCERTO [leia a íntegra do texto no Acervo CONCERTO].
“Quando eu ouvi Piazzolla pela primeira vez, percebi tudo isto. Só que o mundo é muito preconceituoso. Ninguém discute se Bartók e Villa-Lobos foram gigolôs do exótico. Mas Piazzolla, em vida, foi atacado, ao mesmo tempo, por populares e clássicos, porque estava experimentando um novo caminho - à maneira do que aconteceu com Radamés Gnatalli.”
“Piazzolla deixa, em suas partituras, bastante espaço para a improvisação, o que permite uma grande diversidade na interpretação. Quando eu digo que ele dá espaço para interpretações diferentes, não estou me referindo só à dinâmica e à agógica daquilo que está escrito, mas sobretudo a uma certa liberdade para o intérprete de ir utilizando aquele arcabouço de forma livre. Neste sentido, sua música tem um parentesco com a música barroca”, completou.
No início dos anos 2000, Moreira Lima afastou-se dos palcos tradicionais de concertos e criou o projeto Um Piano na Estrada. Com um piano instalado em um caminhão, ele percorreria mais de 300 mil quilômetros, passando por diferentes regiões do país. A ideia, contou ele em 2014, surgiu ainda nos anos 1990, quando ele atuou como subsecretário de Estado da Cultura no governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro (o secretário era Darcy Ribeiro).
“Na época, fiz um projeto de levar concertos às cidades. Mas não à capital. O objetivo era percorrer todo o interior do estado. Inventei até um tijolaço cultural para a divulgação, à semelhança dos tijolaços do Brizola na época, aqueles longos artigos publicados por ele na imprensa do Rio. Foram mais de cem concertos. Algumas vezes eu tocava, em outras eram os músicos da cidade, chegamos a levar uma orquestra de câmara de Moscou”, disse.
“Já naquela época havia o desafio do transporte, de chegar e não poder contar com um palco bonito – quase sempre eram muito feios os que nos eram oferecidos e é triste tocar num palco feio. Porque o povo gosta de ver coisa bonita, não gosta de ver coisa feia, não… Então essa experiência de movimento musical me fez pensar que seria mais efetivo chegar com um caminhão que fosse palco, que fizesse tudo ao mesmo tempo. Meus pianos, por exemplo, eu sempre levava dois, eram transportados num caminhãozinho naquele tempo. Foi das reflexões daquela época que me veio a ideia do caminhão, quando fiz meu projeto. Claro, não foi tão simples assim, cheguei também a pensar em ônibus etc. Mas acabei por comprar um Scania em Santa Catarina, em Jaraguá do Sul. Mandei alongar. Fiz tudo com capital próprio.”
Em perfil publicado sobre o pianista, o jornalista Eric Nepomuceno esboçou um resumo do legado do artista. “Qual o espanto provocado por Arthur em boa parte da crítica? Justamente sua negativa a aceitar fronteiras rígidas entre o erudito e o popular, entre arte maior e arte menor. Para ele, são diferentes expressões de uma mesma cultura rica, diversificada e em eterna ebulição. Tocar Chopin e Mozart em praça pública, em praia ou numa favela com a mesma dedicação com a qual enfrenta as plateias mais exigentes do mundo tocando Nazareth e Pixinguinha é, para Arthur Moreira Lima, uma questão de princípio”, anotou.
“Sente-se especialmente gratificado quando constata a emoção de alguém que nunca havia visto um pianista de sua estatura tocar Chopin e isso, certamente, só ocorre quando ele procura o público mais. Se o trabalhador não tem como ir ao Municipal ouvir Chopin, Arthur leva Chopin ao trabalhador. Assim de simples, assim de justo.”
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