O Brasil acaba de perder um de seus mais exuberantes pianistas. Sonoridade volumosa, calor interpretativo, carisma, facilidade de expressão verbal, cultura humanística vasta, desejo de democratizar sua arte e ânsia por derrubar barreiras estéticas foram as marcas do pianista carioca Arthur Moreira Lima, que acaba de nos deixar, aos 84 anos de idade.
Se formos traçar uma linhagem pianística, no Brasil ele estudou inicialmente com Lúcia Branco, que ajudou ainda a moldar os talentos de Tom Jobim e Nelson Freire – culminâncias dos dois mundos nos quais a arte de Arthur se moveria. Na Europa, com Margueritte Long, ele conheceu as sutilezas e refinamento da escola francesa. Porém, seu pianismo assertivo e vigoroso é mais habitualmente associado à escola russa e, nesse aspecto, os estudos no Conservatório Tchaikovski, de Moscou, com Rudolf Kehrer, foram decisivos.
O ponto de virada de sua trajetória aconteceu na sétima edição do Concurso Internacional Chopin. Disputada por 76 pianistas de 30 países, a edição de 1965 é tida como histórica, arrebatada pela maga argentina Martha Argerich. Arthur Moreira Lima ficou em segundo lugar, recebendo do público uma ovação de 20 minutos. Afinidades técnicas e de temperamento já faziam dele, naquela época, um intérprete bastante especial de Chopin, polonês radicado em Paris cuja música parece unir a paixão da escola eslava ao requinte do pianismo francês. Ouça abaixo Arthur tocando o Scherzo em si bemol menor, Op. 31, no concerto de premiação do concurso.
Para que se tenha uma ideia do impacto que ele causou, o diretor do Instituto Chopin, em Varsóvia, Artur Szklener, contou em sua recente visita ao Brasil que tem esse prenome justamente em homenagem ao pianista brasileiro. Em 2021, Arthur voltou à capital polonesa, desta vez como jurado do concurso, na edição vencida pelo canadense Bruce Liu.
Quatro anos mais tarde, em 1969,participou da terceira edição do Concurso Internacional de Piano de Leeds (Reino Unido). Presidido por William Glock, e sendo integrado por pianistas de renome como Clifford Curzon, Nikita Magaloff e Ivan Moravec, o júri outorgou o primeiro prêmio ao romeno Radu Lupu. Lima acaba na terceira colocação – mesma posição que obteve no ano seguinte, no Concurso Tchaikóvski, em Moscou. Ouça-o aqui tocando o terceiro concerto de Rachmaninov e o primeiro de Tchaikóvski nas provas finais da competição.
Lima mudou-se então para Viena, onde consolidou um respeitável currículo, atuando com orquestras como as filarmônicas de Leningrado, Moscou, Varsóvia, as sinfônicas de Berlim, Viena, Praga, BBC de Londres e National da França, regidas por maestros como Kurt Sanderling, Kirill Kondráchin, Mariss Jansons, Serge Baudo, Jesus Lopez-Cobos, Sir Charles Groves, Vladimir Fedossêiev e Rudolf Barchai. Desenvolveu ainda uma parceria com o pianista João Carlos Martins, tocando os 24 prelúdios para piano solo de Chopin em concerto, alternados com os prelúdios do Cravo Bem-Temperado, de Bach, executados pelo parceiro – projeto gravado em disco. Assista aqui a um vídeo que recria parte do projeto.
Porém, em vez de investir mais pesadamente na carreira internacional, Arthur resolveu regressar ao Brasil – talvez por saudade dos jogos do Fluminense, talvez pelo clima de otimismo político com o retorno ao Brasil dos opositores anistiados pela ditadura militar. Foi um charmoso divulgador da música de concerto para plateias mais amplas no programa Um Toque de Classe, da TV Manchete (veja aqui). Presente constante na mídia, apresentou-se na ECO 92, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, dividindo o palco com estrelas planetárias como o ator inglês Jeremy Irons, o tenor espanhol Plácido Domingo e o trompetista norte-americano Wynton Marsalis
E teve uma importância fundamental na divulgação de nossa música, para além dos rótulos. Seus pioneiros álbuns dedicados a Ernesto Nazareth (ouça aqui) foram divisores de águas na recepção do compositor no Brasil, e ele dedicou-se com igual afinco a compositores-pianistas da linhagem nazarethiana, como Radamés Gnattali (ouça aqui) e Francisco Mignone (ouça aqui). Além, é claro, de Villa-Lobos, cujo concerto para piano nº 1 ele gravou na então URSS:
E também passou a gravar extensivamente a música popular brasileira – na época, um estigma para um artista “de concerto”. Em 1979, registrou A Grande Música de Noel Rosa (Copacabana), com arranjos de Radamés Gnattali e, no mesmo ano, Chorando Baixinho (Kuarup), com Abel Ferreira e o grupo Época de Ouro. Em 1980, juntou-se a Elomar em Parcelada Malunga (Rio do Gavião/Marcus Pereira), com participações de Xangai e Heraldo do Monte. Novamente com Heraldo e Elomar, e dessa vez contando com o clarinete de Paulo Moura, fez o álbum ConSertão (Kuarup, 1982).
Não foi tudo: de novo com Paulo Moura, porém agora contando com o violão de Raphael Rabello e a percussão de Chacal, acompanhou o cantor Ney Matogrosso em Pescador de Pérolas (CBS, 1987). Colocou seu piano para dialogar com outra grande voz da MPB, a de Nelson Gonçalves, em O Boêmio e o Pianista (BMG Ariola, 1992). Relê clássicos do choro no álbum solo De Repente (L'Art, 1985), e dividiu o palco com um dos maiores flautistas do Brasil em Altamiro Carrilho e Arthur Moreira Lima (Tom Brasil, 1996). No ano 2000, a Sony Music lançou álbuns em que faz releituras solo de temas de Tom Jobim e Caetano Veloso.
Em 2002, adquiriu um caminhão, adaptando-o para transportar seu piano Steinway. Suas apresentações nos auditórios tradicionais das grandes cidades brasileiras escassearam em prol do caminhão-teatro. Em 2020, no podcast do Instituto Piano Brasileiro (ouça aqui), Alexandre Dias fez uma série de entrevistas em que o pianista reflete sobre sua trajetória. O canal do IPB no YouTube traz ainda muito material inédito, com registros de gravações ao vivo que o próprio pianista entregou a Dias, e que são um deleite de escutar.
Felizmente, seu legado está amplamente registrado e documentado. Estive entre aqueles que correram às bancas de jornais em 1998/99 para comprar a coleção em que a revista Caras lançou a discografia de Arthur Moreira Lima – um apanhado de 41 CDs, com mais de cem compositores de diversas nacionalidades.
Hoje essa produção pode ser ouvida na internet, e testemunha a riqueza e a versatilidade de um dos maiores artistas do teclado que o Brasil já teve.
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