O espetáculo acontecia em uma enorme tenda. Fidelio, de Beethoven. Durante o primeiro ato, o público era acossado por policiais. No início do segundo, as pessoas eram obrigadas a cobrir a cabeça com um saco preto, para que nada pudessem ver enquanto ouviam a ária de Florestan. No coro e entre os figurantes, mais de duzentos voluntários.
Otelo. A ópera de Verdi. Uma fábrica abandonada. O público descalço, pés no chão. O coro comunitário se juntando a voluntários nas cenas em que se faz presenta a multidão. Para a plateia, é dada a chance de se juntar a eles e assumir diferentes papeis.
As duas produções foram encenadas pela Birmingham Opera, na Inglaterra, e traduzem bem a crença de seu criador, o diretor teatral Graham Vick. “Eu acredito profundamente que a ópera é a forma de arte mais expressiva. Mas se perde no conceito das casas de ópera, das companhias de óperas, no glamour. É vendida da forma errada. Ela se reduz às estrelas. Mas não se trata disso, mas, sim, das histórias sendo cantadas”, disse certa vez. “O que nosso trabalho tenta fazer não é apenas envolver e excitar o público. É tentar levar adiante, experimentar e empurrar os limites da própria forma de arte. Ou de como podemos interpretá-la, explorá-la e nos empolgar com ela.”
Vick morreu no último sábado, dia 17, aos 67 anos, vítima de complicações da Covid-19. Foi um inovador, capaz de levar a ópera aos limites pela consciência que tinha da necessidade de se repensar suas tradições e amarras – e por acreditar na força do gênero acima de tudo.
Nascido em Birkenhead, na Ingletarra, Vick estudo no Royal Northern College of Music, em Manchester. Em 1987, criou a Birmingham Opera Company. Foi diretor de produções em Glyndebourne e esteve à frente da Scottish Opera. Como diretor convidado, atuou nos principais teatros de ópera do mundo.
Seus trabalhos incluíam Tristão e Isolda, de Wagner, na Deutsche Oper de Berlim; A cidade morta, de Korngold, e Otelo, de Verdi, no Scala de Milão; O caso Makropoulos, de Janácek, no Teatro Mariinsky de São Petersburgo; Manon Lescaut, de Puccini, na Arena de Verona; Falstaff, de Verdi, no Covent Garden de Londres e no Metropolitan de Nova York. É apenas uma pequena lista de produções marcantes, muitas delas lançadas em vídeo e DVD, à qual podem se somar títulos como La Rondine, de Puccini (com a participação do tenor brasileiro Fernando Portari), e uma histórica versão da Lulu, de Alban Berg, no Festival de Glyndebourne.
Em entrevistas, reforçava a crença de que era preciso quebrar barreiras na relação entre o público e a ópera. Trabalho que guiava o que fazia em Birmingham, como contou em um artigo escrito em 2016 para o jornal britânico The Guardian:
“Para termos certeza de que a ópera é para todos, em Birmingham saímos pela cidade para procurar nossa plateia, encontramos as pessoas em seus territórios. Convidamos moradores para participar de nosso trabalho e nos ajudar a encontrar o público – um público que também participa, engajados naquilo que hoje se chama de teatro imersivo. Queremos falar com todas as pessoas de uma cidade etnicamente diversa e agir positivamente para contratar solistas profissionais etnicamente diversos.”
“Mas talvez a parte mais radical da visão tenha sido a remoção da barreira da educação convencional e dos projetos educativos, colocando a responsabilidade de encontrar, desenvolver e educar nosso público inteiramente no próprio trabalho que estamos desenvolvendo. Você não precisa ser educado para se emocionar, comover e excitar com a ópera. Você só precisa experimentá-la diretamente, em primeira mão, sem nada a atrapalhar. Somos nós que fazemos o trabalho cuja responsabilidade é remover as barreiras e fazer as conexões que irão liberar o poder da ópera para todos.”
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