No ‘Fidelio’ do Theatro São Pedro, o ódio e a banalidade moralista se destacam

por João Luiz Sampaio 22/04/2025

Na história de Fidelio, de Beethoven, Leonore resolve se travestir de homem e conseguir um trabalho na prisão em que, ela acredita, está sendo mantido preso o seu marido Florestan. Ela se apresenta com o nome de Fidelio, conquista a confiança do carcereiro Rocco – e o amor de sua filha Marcelina. Faz uso da aproximação com a família e convence Rocco a levá-la até o calabouço em que está um preso particularmente perigoso, a quem o governador da prisão, Pizarro, pretende matar. No segundo ato, a confirmação: tal preso é mesmo Florestan e, quando a morte do amante parece iminente, ela revela sua identidade para impedir o desfecho. A chegada do ministro Don Fernando é anunciada e, em nome do rei, ele se coloca contra o bárbaro Pizarro. Os prisioneiros são libertados. Florestan e Leonore estão juntos mais uma vez.

À época da composição da ópera, na primeira década do século XIX, os ideais iluministas rondavam a mente de Beethoven. A razão, a justiça, a luta pela verdade, a comunhão entre os homens; uma sociedade que se constrói a partir da reação à tirania, perante a qual se impõe a liberdade – são todos temas que perpassam a história. Mas do contexto da trama sabemos realmente muito pouco. Em seu ensaio sobre a obra, publicado em Music at the Limits, Edward W. Said chama atenção ao fato de que não conhecemos de que crime Florestan é acusado; em sua ária, no início do segundo ato, ele diz ter sido punido por dizer a verdade, mas Beethoven não nos diz que verdade é essa, apenas que ela está relacionada a Pizarro. E o que podemos subentender, pelo contexto da criação da obra, é que possui alguma conotação política.

Na montagem estreada na semana passada no Theatro São Pedro de São Paulo, o diretor William Pereira, apoiado no dramaturgismo de Ligiana Costa, preenche esses espaços vazios. Leonore e Florestan são jornalistas em meio a uma investigação sobre a prisão ilegal de colegas da imprensa, pela qual é responsável, eles descobrem, Pizarro. Florestan é preso. E Leonore, após enviar suas descobertas ao magistrado Fernando, resolve partir em busca de Florestan. A escolha é interessante, em especial por dar à personagem feminina uma motivação que vá além da felicidade conjugal. E se justifica. Fidelio é acima de tudo uma ópera de ideias e, por isso mesmo, atemporal. 

Mas, como toda ação se passa já na prisão, é preciso oferecer essas informações prévias ao público, o que é feito por dois vídeos que acompanham as introduções orquestrais do primeiro e do segundo atos. E aí nem mesmo a qualidade da execução da orquestra comandada por Claudio Cruz, arisca e violenta nas cordas, intensa nas madeiras, sombria na percussão, impede que a atenção se dilua e tire a força da música na construção de climas, em especial na introdução do segundo ato e da ária de Florestan, uma das grandes passagens da carreira de Beethoven (que infelizmente ganhou do tenor Eric Herrero uma interpretação descompromissada, em especial quando contrastada com a intensidade oferecida pela soprano Eiko Senda como Leonore/Fidelio). Ainda assim, o espetáculo é fluente, pelo senso teatral da leitura de Cruz e seus músicos (ao coro, infelizmente, restaram desencontros incômodos) e pela direção de atores.

Quando colocado inteiramente em um só ambiente, o da sala de controle da prisão, o primeiro ato pode se tornar um problema. Mas o cenário de Georgia Massetani faz sua mágica. Austero e simples, deixa espaço para que Pereira trabalhe a movimentação dos atores em cena e coloque neles o foco da ação, que não se torna em momento algum monótona. Momentos como o quarteto Mir ist so wunderbar ou a ária de Fidelio (tornada ainda mais impactante pelo crescendo dramático trabalhado por Senda) são testemunhos disso. E não os únicos, com destaque ainda para o lirismo quase pueril da Marcelina de Lina Mendes e do Jaquino de Mar de Oliveira.

Lina Mendes, Gustavo Lassen e Eiko Senda em cena de 'Fidelio' [Divulgação/Iris Zanetti]
Lina Mendes, Gustavo Lassen e Eiko Senda em cena de 'Fidelio' [Divulgação/Iris Zanetti]

 

Há muita discussão em torno do modo como Beethoven constrói seus personagens. O maestro John Eliot Gardiner, que trabalhou com as diferentes versões da ópera, diz que, ao não explorar a fundo a história dos personagens, Beethoven opta por privilegiar as ideias perante a complexidade humana daqueles que retrata no palco. Já Bernard Shaw, ainda que reconheça as falhas na dramaturgia, insiste no fato de que, mesmo tratando acima de tudo de ideias e conceitos filosóficos, Beethoven foi capaz de fazê-lo sem perder de vista a profunda complexidade da condição humana. Mas o que Shaw oferece como oposição talvez não precise sê-lo. E se for justamente nos espaços vazios que essa condição se coloca de maneira mais flagrante? Em outras palavras, não estaria naquilo que não é dito a riqueza a ser explorada na partitura de Beethoven?

Não sei a resposta. Mas, ao mesmo tempo em que a montagem nos oferece elementos para compreender de forma mais bem marcada as motivações de Leonore e Florestan, os dois grandes personagens da noite de estreia foram Pizarro e Rocco. Do primeiro, o barítono Licio Bruno ofereceu um retrato feito de urgência quase maníaca em seu desejo de morte. O Rocco de Gustavo Lassen, por sua vez, foi desconcertante pela forma como mistura o lirismo, o fraseado, a elegância do canto com as palavras que falam de uma moralidade que se recusa a matar, mas aceita cavar a vala onde o corpo assassinado será jogado.

Volto rapidamente a Said e a seu comentário sobre o final da ópera. “É importante reconhecer que Fidelio lida com incertezas e incapacidades, se deparando com problemas e soluções que não consegue oferecer totalmente. Tirania e benevolência operam mais ou menos como equivalentes, podem ser substituídas uma pela outra pelo milagre da chegada repentina: a polícia de Pizarro e os trompetes que anunciam a chegada de Fernando são intercambiáveis. A explicação de Florestan é de que o Estado agiu contra ele, mas nunca sabemos que tipo de Estado é esse. Quem são os demais prisioneiros? Todos almejam liberdade e luz, mas estamos certos de que são todos movidos por princípio (como Florestan) ou amor (como Leonore)? O que o compositor faz para nos garantir que a história da tirania não irá se repetir?”, escreve. 

É no desfecho de Fidelio, com sua exaltação da liberdade e da verdade, que a ópera parece particularmente vaga e, sem um lastro que o elabore, quase inocente. Talvez por isso a crueldade de Rocco e banalidade da moral de Rocco calem mais fundo à medida em que saímos do teatro e lembramos do tempo em que vivemos.

Shaw sabia das coisas. 

A ópera 'Fidelio' fica em cartaz até o dia 27 de abril no Theatro São Pedro; veja mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO


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