Decisão de Andràs Schiff de cancelar concertos nos EUA e disco da violinista Patricia Kopatchinskaja sobre o exílio mostram formas de diálogo entre artistas e o mundo que os cerca
Um dos maiores pianistas do nosso tempo, o húngaro Andras Schiff, 71 anos, deu uma entrevista ao crítico norte-americano David Patrick Stearns no dia 27 de março passado. Rotineiramente, estas conversas giram em torno dos próximos concertos e/ou gravações. Mas Stearns já começa dizendo que o pianista “conhece a América melhor do que a maioria dos americanos por causa de suas turnês e por ser um observador externo inteligente”. E pergunta: “O que os norte-americanos perderam até agora em termos de cultura geral, liberdade de expressão? O que pode ser perdido no futuro?”
A entrevista foi motivada por sua decisão de cancelar todas as suas apresentações nos Estados Unidos na temporada 2025-2026. Por isso sua resposta foi direta: “O que se perdeu é o senso de decência. É um novo sistema de valores, ou melhor, de falta de valores. Parece que não sabemos mais o que é certo ou errado. Por exemplo, ser um mentiroso costumava ser considerado um vício, mas se for o presidente ou o vice-presidente, então está tudo bem. Perdemos a compaixão, a capacidade de sentir pelos outros. É tudo sobre dinheiro, riqueza e poder. Quanto ao futuro, alguns dos danos são irreparáveis, mas isso é apenas o começo; há muito mais por vir”.
Schiff não é um músico ativista, militante, como por exemplo o turco Fazil Say, que já foi até condenado à prisão por Erdogan por causa de suas manifestações em Istambul contra o regime autoritário. Sereno, não costuma fazer alarde de gestos extramusicais como agora. Por exemplo, desde 2012, lá se vão treze anos, Schiff não pisa mais em Budapeste, sua cidade natal, onde nasceu 71 anos atrás numa família judaica. Jurou não voltar à sua Hungria natal hoje tutelada por Viktor Urbán. Não toca na Rússia desde o início da guerra da Ucrânia.
Semana passada, em outra rara entrevista, desta vez para a revista VAN, ele confessou estar surpreso com a “falta de solidariedade” de seus colegas músicos.
De fato, solidariedade é algo difícil de se encontrar hoje em dia, em sentido absoluto. Mas eu quero falar também sobre outra artista de exceção: a violinista Patricia Kopatchinskaja, “PatKop”, como os mais chegados a chamam. Nascida na Moldávia 48 anos atrás, felizmente não se contentou com o repertório convencional de seu instrumento. Privilegia a música contemporânea, usa seu prestígio para recolocar em circulação músicas recalcadas ao longo da história.
Seu mais recente álbum, Exile (Alpha), lançado em janeiro passado, é mais um destes momentos musicais que unem alta qualidade na performance com repertórios que, postos lado a lado, ganham força extra pelo que têm em comum. Neste caso, o sentimento de exílio.
Ao lado do violoncelista austríaco Thomas Kaufmann e da Camerata Bern, que ele integra há doze anos, interpreta obras de compositores marcados pelo exílio, voluntário ou não. Mas não apenas os sempre citados quando se fala deste tema doloroso. E sim Ivan Vichnegradsky (1893-1979) e Andrzej Panufnik (1914-1991). Eles coabitam o mesmo espaço musical de nomes mais conhecidos, como Alfred Schnittke (1934-1998), Eugene Ysäye (1858-1931) e duas melodias folclóricas, uma ucraniana, outra moldava. Schubert é o único dos nomes tradicionais presentes, porém de um jeito diferente: Patricia assina o arranjo para cordas do terceiro dos Cinco minuetos e 6 Trios para quarteto de cordas D. 89.
A fuga e a busca por um novo lar fazem parte da história da humanidade desde os primórdios dos tempos e, ainda hoje, são uma realidade amarga para povos inteiros. Seja devido ao aquecimento global, guerras ou injustiça social, milhões de pessoas emigram na esperança de encontrar uma vida melhor para si ou para seus filhos, escreve Kopatchinskaja
Aproveito a amplitude de espaço de que dispomos no mundo digital para compartilhar boa parte do precioso texto que Patricia e Thomas assinam no encarte. Eles começam assim: “Estou preso(a) ás minhas raízes. Minha árvore, porém, não está mais em minha terra. Dela extraio minha substância vital, o léxico do meu coração, o sopro dos meus pensamentos. Mas é outro sol que aquece minha árvore. Minha terra natal é um lugar deserto. A luz das minhas memórias é o mapa estelar de um céu passado. Estou desenraizado(a) para sempre. Este programa conta como, através da música, compositores foram forçados a deixar sua terra natal. A fuga e a busca por um novo lar fazem parte da história da humanidade desde os primórdios dos tempos e, ainda hoje, são uma realidade amarga para povos inteiros. Seja devido ao aquecimento global, guerras ou injustiça social, milhões de pessoas emigram na esperança de encontrar uma vida melhor para si ou para seus filhos”.
E concluem: “O exílio – geográfico ou interno – só pode ser compreendido se for vivenciado”. Há um século, por exemplo, o russo Wyschnegradsky, cujo quarteto de cordas opus 18, no. 2, está no álbum em versão para cordas, teve que deixar sua terra natal: passou dois terços de sua vida na França. “Construiu pianos de um quarto de tom numa época em que na Rússia a menor dissonância já era proibida como provocação política, e Shostakovich sofreu a humilhação de ter que se desculpar com a União dos Compositores Soviéticos pela música que havia escrito”.
Voltemos ao texto de Patricia e Thomas (ela rege, ele sola, ao lado da Camerata Bern, o concerto para violino de Panufnik): “Andrzej deixou sua Polônia natal em 1954 em protesto contra a falta de liberdade no país e foi para a Inglaterra. Sua fuga espetacular, durante a qual foi perseguido por agentes poloneses em Zurique, ganhou as manchetes. Em sua terra natal, era proibido falar de suas obras ou mesmo mencionar seu nome”.
Eles invocam também o exemplo de Schnittke: no álbum, eles interpretam um curioso e interessante arranjo para cello, cordas e cravo de de sua sonata para cello e piano “Alemão do Volga e filho de um jornalista judeu de Frankfurt, Alfred Schnittke deixou sua terra natal quando a União Soviética ruiu. Ele morreu em Hamburgo, mas está enterrado em Moscou”.
A música também – ela entra em nossos corações, cria raízes ali, multiplica-se, atravessa fronteiras e eras com músicos viajantes, não pertence a ninguém e conta tudo o que ouviu e vivenciou ao longo do caminho
Em seguida, dão a medida do sofrimento de quem se exila: “Onde fica nossa pátria? Onde nascemos ou onde morremos? O exílio é dor e isolamento ou também uma fonte de inspiração? O que resta aos compositores, músicos, seres humanos, é o exílio na arte, no indizível da música, que escapa a toda conceituação. Você ouvirá sons neste concerto que talvez saibam disso. Vamos ouvir o que eles têm a dizer. Humanos, animais, plantas, bactérias, tudo, até o menor ser vivo, se move por toda a Terra. A música também – ela entra em nossos corações, cria raízes ali, multiplica-se, atravessa fronteiras e eras com músicos viajantes, não pertence a ninguém e conta tudo o que ouviu e vivenciou ao longo do caminho. Ela assume novas formas e aparece de repente entre outros povos, em lugares surpreendentes, às vezes até em outros continentes. Assim como os pássaros, a música não pode ser mantida na coleira ou enviada de volta à sua terra natal. Nós transmitimos aos outros o que ouvimos, sempre de uma forma um pouco diferente".
Falam, ainda de como esta angústia e sofrimento se concretizam em música: "Algumas peças de música folclórica percorreram caminhos surpreendentes, complexos e aventureiros: como chegaram até nós, através de quantos mares e montanhas, estepes e florestas foram transportadas, com cuidado e amor, quais pés marcaram o ritmo em qual solo, quantas gargantas as cantaram, quantos instrumentos as tocaram, quantos músicos sopraram sua alma nelas? A complexa estrutura rítmica das peças, que geralmente são tocadas (ou improvisadas?) por mulheres neste estranho instrumento chamado kugikly, evoca poderosamente os sons e a atmosfera da música dos pigmeus, que tanto impressionou e influenciou György Ligeti. Ele sabia sobre o kugikly?... Se dermos asas à imaginação, podemos imaginar que o kugikly veio do exílio da África para a Ucrânia, onde encontrou um novo lugar para evocar o povo com sua polifonia dançante que lembra um soluço medieval. É por isso que o incluímos em nosso programa – com agradecimentos especiais a Jonathan Keren por seu arranjo criativo. Ele criou de ouvido (porque não há partitura dessas peças) uma transposição para instrumentos de cordas que é a mais colorida e próxima possível do som original do kugikly”.
É emocionante ouvir Kugikly para violino e flautas de pã ucranianas e russas, melodia folclórica, no arranjo de Keren para cordas.
A faixa que deu título ao álbum Exílio, leva esta palavra no título, com um ponto de exclamação. O virtuose violinista belga Eugene Ysäye o compôs em 1917, durante a Primeira Guerra Mundial. Ele o chamou de “poema sinfônico para quatro violinos e duas violas”. A atmosfera é melancólica. Ele sentia falta de sua terra natal. Durante a Guerra, emigrara para a Inglaterra e em seguida, ainda durante a Guerra, assumiu como maestro da orquestra de Cincinnati, nos Estados Unidos.
Patricia fecha esta tocante viagem musical pelo mundo torturado do exílio com uma canção folclórica da “sua” Moldávia, a igualmente melancólica, saudosa Cuco com penugem cinza. Sobre um pedal das cordas graves, Patricia e o também violinista Vlad Popescu cantam os seguintes versos (que traduzo literalmente): "Cuco de penas cinzentas, por que você só canta canções tristes? Cansou da floresta ou está profetizando minha morte? Haiduk, Guerreiro, estou aqui para lhe contar sobre a saudade da sua menina: sobre a canção que ela canta quando busca água no poço. Cuco de penas cinzentas, diga à minha amada que também sinto falta dela. Matarei mais três boiardos [nobres russos] e depois retornarei à minha aldeia".
Impossível ficar impassível.
![Andràs Schiff e Patricia Kopatchinskaja [Fotos Divulgação]](/sites/default/files/inline-images/w-jmc.jpg)
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