Morre, aos 77 anos, o maestro norte-americano James Levine

por João Luiz Sampaio 17/03/2021

Em maio de 2016, a Orquestra da Metropolitan Opera de Nova York subiu ao palco do Carnegie Hall para um concerto com trechos do Anel do Nibelungo, de Wagner. Na regência, o maestro James Levine. Já com dificuldade de se locomover, seguiu até o pódio adaptado especialmente para ele, que permitia o encaixe da cadeira de rodas, erguida então por um pequeno elevador. O público o ovacionou por longos minutos.

Saí daquela apresentação com sensações conflituosas. De um lado, todo o aparato técnico, a reverência dos músicos, a acolhida incessante do público, tudo parecia um testemunho do reconhecimento a um músico que fez do Metropolitan referência no mundo da ópera e, de sua orquestra, uma das melhores do mundo. Naquela tarde, em Wagner, os músicos soavam uma vez mais impressionantes, pela clareza e pela intensidade.

Mas havia algo de muito melancólico também. Os gestos de Levine, que sofria há tempos de um tremor nos braços, eram erráticos. As entradas muitas vezes chegavam atrasadas para os instrumentistas e os cantores. Em relações antigas, em um repertório muitas vezes revisitado em conjunto, tudo funciona mesmo assim. Mas não dava para evitar a sensação de que algo ali, apesar de todos os esforços, estava no fim.

E esse fim chegou cerca de um ano depois. Em 2017, o jornal New York Post publicou uma reportagem sobre acusações de assédio sexual contra Levine. Os casos remontavam aos anos 1980 e 1990 e havia dúvida sobre se teriam consequência criminal. Mas tornaram definitivamente públicos episódios que até então eram apenas comentados superficialmente. Muito comentados, por sinal. Jornalistas americanos, como o crítico Alex Ross, da revista New Yorker, pediram desculpas por nunca terem se dedicado a investigar alegações que já se conheciam há tempos. Outros preferiram saída mais poética, digamos: Anthony Tommasini, do New York Times, perguntou-se: o que fazer agora com todas essas gravações de Levine em minha estante?

O maestro foi afastado do Metropolitan, que instaurou uma investigação interna. E, em 2018, após chegar à conclusão de que havia “indícios críveis” de má conduta, a companhia resolveu demiti-lo. Levine respondeu com um processo, que chegou ao fim no ano passado, após um acordo que determinou o pagamento por parte do teatro de US$ 3,8 milhões. Uma vitória que não evitou o fim de sua carreira. O maestro chegou a ser convidado para voltar aos palcos no ano passado, pelo Maggio Musicale Fiorentino, mas a pandemia impediu a viagem à Itália. Levine recolheu-se então a sua casa em Palm Springs, na Califórnia, onde morreu no dia 9 de março. A notícia só foi revelada nesta quarta-feira, dia 17. Não houve detalhes sobre a causa da morte. 

Carreira

Levine foi, em certo sentido, a antítese dos grandes maestros de carreira internacional na segunda metade do século XX. Sua relação com o Metropolitan foi de 1971, ano de sua primeira ópera como convidado, até 2017. São 46 anos, quase meio século, uma relação longeva difícil de se encontrar no mercado operístico e sinfônico. Passava a maior parte de seu tempo em Nova York, assumindo poucos compromissos fora da cidade. Mesmo quando dirigiu, por breves períodos, a Filarmônica de Munique e a Sinfônica de Chicago, foi com a ressalva implícita de que o Metropolitan seguiria como sua prioridade. 

Seus biógrafos explicam essa postura a partir do contato que ele teve, ainda na juventude, com o maestro George Szell, que o convidou, nos anos 1960, para ser seu assistente na Orquestra de Cleveland. Szell era um “construtor de sonoridades” e acreditava em relacionamentos longos entre maestros e seus músicos. Para ele, era a maneira de se criar personalidades artísticas fortes. De certa forma, foi o que Levine fez com a companhia do Metropolitan. Muitos críticos reclamaram, ao longo do tempo, de uma postura possessiva demais, que impedia a presença de outros grandes regentes nas temporadas. Nenhum deles, no entanto, questionava os resultados alcançados por Levine.

Entre os músicos, também foi uma figura respeitada. Mesmo quando começou a fazer trocas na composição da orquestra: as audições eram às cegas e o próprio Levine preferia não participar como jurado, de forma que as escolhas coubessem aos colegas músicos. No cotidiano, músicos que deram depoimentos à jornalista Johanna Fiedler, autora de um livro sobre o teatro, Molto Agitato, falavam de um trabalho quase obsessivo com os detalhes na construção da interpretação. Na ópera e fora dela (Levine criou para a orquestra do Met uma série sinfônica no Carnegie Hall). Um violinista contou por exemplo de um ensaio no qual passaram, ao todo, seis horas trabalhando no acompanhamento do primeiro movimento do Concerto para violino de Tchaikovsky, antes que o solista chegasse à cidade. Posturas assim, acrescentou, eram normalmente receita de fracasso e indisposição. Mas o grupo tolerava essas “excentricidades” por reconhecer que os resultados finais eram visíveis.

A atenção ao detalhe, à qualidade, vinha acompanhada de uma abertura de repertório. Uma abertura calculada: o desejo de encomendar novas obras, desde que se tornou principal regente em 1973, foi sempre aplacado pela justificativa de que, por sua configuração, o Metropolitan deveria seguir um caminho mais ligado ao mainstream. Ainda assim, ele ampliou o repertório ao menos em direção às primeiras décadas do século XX. E eventualmente utilizou a importância que conquistou dentro da companhia para estrear títulos, o mesmo que fez à frente da Orquestra Sinfônica de Chicago, onde trabalhou próximo a compositores como o norte-americano Elliot Carter. 

E havia também a relação com os cantores, por quem Levine era adorado. Assistir às suas apresentações era testemunhar o equilíbrio raro entre o conhecimento do idioma operístico, o desejo de construir uma interpretação própria e, ao mesmo tempo, dar aos cantores espaço para trabalhar. Em suas memórias, a soprano Leonie Rysanek o compara a Karajan, ressaltando a paixão que tinha pela voz. Era um maestro que gostava de ópera e de canto, afirma Rysanek, que arriscava uma análise de personalidade. “Ele próprio... Um pássaro triste não canta. Jimmy não confia em absolutamente ninguém. Ele não confia nem mesmo em si próprio.”

Legado

As razões da saída de Levine do Metropolitan podem bem, como afirmou Anthony Tommasini, suscitar dúvidas sobre o que fazer com o seu legado – e cada um sabe que gravações prefere ter em sua estante. Podem e talvez devam. Assim como devem acima de tudo propor uma reflexão sobre o modo como estão organizadas as companhias artísticas. É uma estrutura verticalizada, pautada pelo silêncio, pela impossibilidade de questionamento, a responsável por perpetuar situações que, como neste caso, já eram conhecidas. Uma estrutura que rechaça a diversidade e a representatividade. E o dissenso.

O olhar mais importante parece então aquele em direção ao futuro. O tamanho das realizações de Levine à frente do Metropolitan é tão grande quanto os desafios que agora se colocam, seja na perpetuação da qualidade artística, seja na busca de novos rumos institucionais. A chegada de Yannick Nézét-Séguin à direção prometia justamente a coragem de encarar essas questões. E as primeiras notícias davam conta justamente de temporadas mais arejadas artisticamente, da busca por outros espaços para a ópera e da certeza de que tudo isso só será possível quando houver de fato abertura às questões do mundo contemporâneo. Veio então a pandemia. E, com ela, a decisão de parar de pagar os músicos – matéria recente do New York Times mostra que mais de um terço da orquestra já precisou deixar Nova York por não ter como se manter, enquanto outros artistas precisaram inclusive vender seus instrumentos.

Um começo nada promissor. 

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O maestro James Levine [Divulgação]
O maestro James Levine [Divulgação]

 

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