Parecer jurídico questiona competência da Fundação Theatro Municipal em exigir demissão de colaborador

por Nelson Rubens Kunze 24/09/2025

Documento afirma ainda que eventual infração da Sustenidos não poderia ser enquadrada como gravíssima – a única que acarretaria a rescisão unilateral do contrato 

Como noticiado também no Site CONCERTO (leia aqui), o prefeito Ricardo Nunes (MDB) ordenou a rescisão do contrato com a Organização Social Sustenidos para a gestão do Complexo Cultural Theatro Municipal de São Paulo. A decisão foi motivada por um post em rede social de um funcionário da Sustenidos, com a repostagem de um vídeo que afirmava que não deveria se chorar a morte do ativista norte-americano Charlie Kirk, assassinado enquanto participava de um debate em uma universidade no estado de Utah. No vídeo, Kirk era tratado por “nazista” e “racista”.

Por ação do deputado Nikolas Ferreira (PL), o post viralizou e o Prefeito, há tempos pressionado por setores conservadores incomodados com a programação do Theatro Municipal, viu a oportunidade de rescindir o contrato com a Sustenidos. Segundo reportagem publicada no G1, Nunes afirmou que “solicitamos que a organização demitisse a pessoa, mas ela não o fez. Portanto, pactuou com esse comportamento. E quem pactua com violência não serve para prestar serviço à Prefeitura”. E emendou: “Já havia uma série de problemas com o Tribunal de Contas, mas a postagem de um colaborador incentivando a violência foi a gota d’água”. 

Antes, a Fundação Theatro Municipal, que faz a supervisão do contrato de gestão da Sustenidos, já havia expedido dois ofícios (nº 248 e nº 250/FTMSP/2025), o primeiro solicitando providências disciplinares imediatas e o segundo exigindo diretamente a demissão o colaborador. Posteriormente, o Ofício nº 260/FTMSP/2025 reiterou a cobrança, fixando prazo de poucas horas para resposta.

eventual demissão infundada poderia expor a Sustenidos a riscos trabalhistas e financeiros, em contrariedade à sua obrigação contratual

O parecer encomendado pela Sustenidos ao escritório Rubens Naves Santos Jr Advogados questiona a competência da Fundação Theatro Municipal de São Paulo em exigir a demissão do colaborador que postou a mensagem controversa na rede social “por ultrapassar os limites do poder de supervisão contratual e incidir em esfera reservada à autonomia gerencial da Organização Social”. E, além disso, sustenta que uma “eventual demissão infundada poderia expor a Sustenidos a riscos trabalhistas e financeiros, em contrariedade à sua obrigação contratual”, uma vez que é integralmente da Sustenidos a responsabilidade por encargos trabalhistas, previdenciários e fiscais e o “dever de observar a economicidade no uso de recursos públicos”.

Inicialmente, vale a pena conhecer o autor do parecer. Rubens Naves é um advogado no campo do direito público e do terceiro setor, com uma importante atuação na regulação das organizações da sociedade civil, tendo participado da elaboração da Lei nº 9.637/1998, que instituiu as Organizações Sociais. (Ele é coordenador do livro Organizações Sociais: A Construção do Modelo (Editora Quartier Latin, 2014), que conta com a contribuição de importantes juristas e que traça a evolução do modelo desde o seu surgimento, abordando marco legal, disputas judiciais e implicações para a administração pública, gestão, transparência e sociedade civil.) Em uma frase, Rubens Naves é reconhecido como um dos arquitetos jurídicos do modelo das OSs no Brasil, que ajuda a construir a ponte entre Estado e sociedade civil organizada, numa tentativa de conciliar eficiência administrativa com responsabilidade pública. Portanto, um especialista!

O parecer jurídico elaborado por seu escritório está estruturado em 8 partes.

Após apresentar o fato ocorrido e notar que “a postagem não mencionava a Sustenidos nem a Fundação, tampouco utilizava símbolos, marcas ou elementos que permitissem associação direta com as instituições”, o documento afirma que o caso deve ser “compreendido em um cenário de acentuada polarização política nacional e internacional”, e que “o episódio revela duas dimensões distintas: de um lado, a manifestação original e, de outro, o processo de amplificação pública, em que o conteúdo foi reinterpretado e ressignificado na mídia, atribuindo-lhe sentidos mais drásticos do que aqueles efetivamente expressos”.

não se configuram elementos do discurso de ódio, porquanto não há incitação à violência, hostilidade ou discriminação contra grupo vulnerável

Além de questionar a competência da FTM em exigir da Sustenidos ações como a demissão, Naves faz também uma criteriosa análise quanto à razoabilidade da demissão do colaborador, no que diz respeito à “complexa questão dos limites do direito fundamental à liberdade de expressão”. O documento afirma que não foi identificada “imputação criminosa sem provas nem a intenção deliberada de difamar ou injuriar” e que igualmente “não se configuram elementos do discurso de ódio, porquanto não há incitação à violência, hostilidade ou discriminação contra grupo vulnerável”. E conclui afirmando que a postagem, “embora controvertida e passível de gerar desconforto, permanece no campo da manifestação legítima”.

O quinto item do parecer, baseado na legislação e no contrato de gestão, trata da alegação de danos à imagem do Theatro Municipal. Aí, a análise afirma que a caracterização do dano à imagem mostra-se frágil por duas razões principais. A primeira é ausência, “até o momento”, de comprovação do dano efetivo. E a segunda fragilidade reside na ausência de nexo de causalidade entre a conduta do agente e o alegado prejuízo à instituição. “Para que houvesse responsabilização, seria indispensável que o dano apontado decorresse de forma direta e imediata da postagem original do colaborador.”

Aqui, o documento conclui que a “a controvérsia ganhou proporções relevantes quando terceiros ressignificaram a postagem, atribuindo-lhe sentidos que extrapolavam sua literalidade (como a falsa alegação de que o colaborador teria dito que ‘Charles Kirk mereceu morrer porque era nazista’), criando, assim, uma nova proposição, mais grave e condenável”. 

no limite, foi esse processo de distorção, e não a manifestação original, que desencadeou a repercussão negativa e acabou por associar indevidamente a Sustenidos e a Fundação ao episódio

Portanto, “no limite, foi esse processo de distorção, e não a manifestação original, que desencadeou a repercussão negativa e acabou por associar indevidamente a Sustenidos e a Fundação ao episódio, o que possui o condão de romper o nexo causal direto e imediato e, consequentemente, a ocorrência de qualquer dano em prejuízo ao Theatro”.

Em seu item 6, o parecer discuti as implicações das duas alternativas colocadas para a Sustenidos diante da exigência formulada pela FTM, a demissão ou a manutenção do colaborador. Na demissão, seria juridicamente possível uma reclamatória trabalhista que obrigasse a Sustenidos a reintegrar o colaborador ao emprego e mesmo a uma indenização por danos morais. Já no caso da manutenção do colaborador, não acatando, portanto, a exigência da Fundação, “o risco migra da esfera trabalhista para a contratual”.

o documento descarta que a infração possa ser enquadrada como gravíssima – a única que acarretaria a rescisão unilateral do contrato pela Fundação

Após detalhada análise da cláusula específica do contrato de gestão, o documento descarta que a infração possa ser enquadrada como gravíssima – a única que acarretaria a rescisão unilateral do contrato pela Fundação – ou grave, e assinala que “mesmo as hipóteses de enquadramento em infrações de menor gravidade encontram-se frágeis, pois baseiam-se mais em percepções subjetivas de dano reputacional do que em elementos objetivos exigidos para aplicação de penalidades contratuais”.

No item seguinte, o parecer analisa as recomendações assumidas pela Sustenidos no contrato de gestão à luz de Código de Ética e Conduta, cujo regimento estabelece uma gradação de penalidades, que vão desde instrução de conduta e advertência escrita até suspensão e demissão. O item encerra afirmando que “a instauração de processo de apuração prévia não é mera formalidade burocrática, mas uma etapa de mitigação de riscos, na medida em que permitirá à Sustenidos reunir elementos objetivos sobre a conduta e suas repercussões; assegurar o direito de defesa do colaborador, evitando a caracterização de arbitrariedade ou discriminação; e fundamentar, de modo proporcional e motivado, a medida a ser adotada, protegendo-se contra questionamentos trabalhistas ou contratuais”.

A conclusão do parecer é um resumo que ratifica os diversos pontos elencados acima. O parecer recomenda “a instauração de apuração formal pelo Comitê de Ética, assegurando contraditório e ampla defesa, como medida de mitigação de riscos e de alinhamento às melhores práticas de governança e compliance, antes de qualquer decisão sobre eventual sanção”. E afirma ainda que, apesar das ponderações colocadas no documento, “não se pode desconsiderar a possibilidade de a Fundação adotar, de forma precipitada, medidas sancionatórias sem o devido fundamento, circunstância que, se ocorrer, deverá ser contestada pela Sustenidos nas vias administrativas e, em último caso, judiciais”.

O parecer jurídico é público e pode ser lido no site da Sustenidos (clique aqui para acessar).

(dreamstime, picstudio)
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