Um dos grandes artistas de sua geração, Proença teve destacada atuação na divulgação do repertório brasileiro
Morreu na noite de sexta-feira, 22 de agosto, o pianista gaúcho Miguel Proença, aos 86 anos. Um dos mais conhecidos intérpretes do piano brasileiro, Miguel foi também um entusiasmado gestor, produtor e curador de séries em palcos e discos, de projetos e casas de concerto, além da atuação como professor universitário. Destacam-se sua série Piano Brasileiro, com 10 discos e apresentações em todo o país em duas turnês muito extensas. Sua discografia é vasta – mais de 30 LPs e CDs. E a carreira no exterior também foi singular, assim como a colaboração com músicos de projeção mundial como o violinista Salvatore Accardo e o flautista Jean-Pierre Rampal. A Rádio MEC vai dedicar sua programação de sábado toda a Miguel Proença.
Conhecido pela simpatia e pelo entusiasmo, Proença nasceu em Quaraí, pequena cidade no extremo sul do país, filho de um farmacêutico, e formou-se em Odontologia, apesar da óbvia inclinação musical – “durante a faculdade, já tocava em clubes, pianos-bares, festas e programas de auditório”, disse ao Instituto Piano Brasileiro em entrevista. Nunca exerceu a profissão. Aluno de Carmem Pozzer e Natho Henn, no Rio Grande do Sul, aperfeiçoou-se na Escola de Hannover e na Escola Superior de Música de Hamburgo. “O primeiro contato com a música se deu quando ouvi pela primeira vez o som de um piano, passeando com minha mãe, vindo de um casarão, na minha cidade natal Quaraí, no Rio Grande do Sul. Foi paixão à primeira vista”, prosseguiu na conversa com o IPB. Atribui a Marly Lisboa, pianista com quem se casaria, o incentivo para se dedicar à música. Estudou ainda com Arnaldo Estrella e Homero de Magalhães.
No final dos anos 1970, fez uma turnê nacional com a soprano Maria Lucia Godoy – também recentemente falecida – e o grupo vocal Viva Voz; dedicavam o espetáculo predominantemente à música popular e ao repertório brasileiro para piano e voz. Também tocou com a atriz Bibi Ferreira. “Sempre fui um batalhador quando o assunto é divulgar a música brasileira”, contou a Leonardo Martinelli em entrevista para a CONCERTO em 2006. “Certa vez, o pianista Jacques Klein chegou a brincar comigo, dizendo: ‘Miguel, como você gosta de Xangô!’ (risos). Agora todo mundo corre atrás do repertório brasileiro, mas eu já faço isto desde há muito tempo”. Sua carreira internacional também foi significativa, apresentando-se principalmente na Europa e na América Latina.
Verdade: além de trabalhar com a música popular de qualidade, pesquisou profundamente a criação brasileira. Gravou a integral para piano de Lorenzo Fernandez e de Alberto Nepomuceno, as 16 Cirandas de Villa-Lobos, Suíte Nordestina nº 2 de Guerra-Peixe e diversas peças de Fructuoso Vianna, Edino Krieger, Guarnieri, Radamés Gnattali e Marlos Nobre. “Naquela época, nos anos 70, a pesquisa foi extremamente difícil pois não existiam pesquisadores e estudiosos que colaborassem para a recuperação, arquivo e organização de partituras dos grandes compositores brasileiros”, contou a Alexandre Dias.
Como gestor e produtor, seu trabalho também é extensíssimo. Dirigiu por duas vezes a Sala Cecília Meireles, foi diretor da Escola de Música Villa-Lobos e secretário de Cultura do estado do Rio de Janeiro; organizou o do Festival de Música de Cascavel, no Paraná, fez a direção musical do Teatro do Sesi no Rio Grande do Sul, entre outros postos.
Miguel esteve no júri de muitos concursos de piano como o Gina Bachauer (EUA), o Vianna da Motta (Portugal), e o José Iturbe (Espanha), mas não deixava de fazer críticas ao que chamava de “maratonas”. “O cerne de um talento artístico vai muito além da técnica e do virtuosismo. A maioria dos candidatos é cansativa, já que eles não têm mais o que dizer na sua suposta perfeição técnica”, disse à CONCERTO. Em outras ocasiões, resumiu o que considerava suas principais lições: “meu pensamento didático em dois aspectos principais: imaginação sonora e fraseado. Além da técnica perfeita, o público quer a emoção da música”.
Uma das ocasiões que mais gostava de relembrar é esta, que contou a Martinelli na CONCERTO: “Como não faço concessões em relação ao repertório que escolho – toco no interior o mesmo programa que toco num grande centro urbano –, por vezes o público reage com certa perplexidade ao que ouve. Entretanto, isto não quer dizer que o público não entenda o repertório. Pelo contrário, após os concertos recebo várias pessoas que tecem comentários interessantes ou mesmo surpreendentes. Uma vez, em Caruaru, um menino de 12 anos chegou a mim e disse: ‘Moço, eu também quero ser crente.’ Achei maravilhoso, porque naquele momento ele havia escolhido sua ‘religião’, isto é, a música”.
Miguel era um entusiasta da vida, com admiradores e amigos fiéis de longa data. Sua mulher Marly faleceu de COVID durante a pandemia e, desde então, seu ânimo se abateu consideravelmente. “Estava internado na Clínica São Vicente há quatro meses e tinha pneumonia de repetição”, disse a grande amiga Glória Guerra, produtora que começou a carreira por incentivo do casal Proença. “Depois de tantas infecções o organismo estava enfraquecido”. Miguel deixa três filhos: Paulo, Daniel e Laura.
O velório de Miguel Proença será realizado amanhã (24/08), das 10h às 14h, na Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro.
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Acervo CONCERTO: Entrevista com Miguel Proença, por Leonardo Martinelli (publicada em maio de 2006)

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