Do fundo do baú

por João Marcos Coelho 22/02/2023

Quem gosta mesmo de música adora surpresas. Sabe que uma das sensações mais prazerosas desta paixão que nos acompanha a vida inteira é a de topar com o inesperado. Sei que os álbuns estão meio fora de moda, hoje curte-se uma faixa, o “single” matéria-prima das playlists. Mesmo assim, contra a corrente, ainda considero mais interessante a viagem por um álbum inteiro, tentar perceber o sentido que o intérprete concebeu ao juntar as faixas. Por isso, decidi compartilhar com vocês três “álbuns” lançados já nos anos 2020. Eles oferecem qualidade de invenção, ótimas performances – e surpresas, várias surpresas. 

Começo com um dos maiores músicos da atualidade, o contratenor francês Philippe Jaroussky. Os contratenores emulam a voz feminina, mas com potência muito maior e em geral limitam-se ao repertório barroco do século XVIII (período em que os “castrati” dominavam a cena musical europeia). Regrinha que nunca valeu para Jaroussky. No auge de uma carreira magnífica e inclusiva, ele sempre rompeu barreiras, descontruiu cerquinhas. Dono de uma técnica miraculosa e altíssima sensibilidade, é um fenômeno. Em seu álbum  “À As Guitare” (Warner), convida o violonista Thibaut Garcia para uma deliciosa “viagem musical inclusiva” no tempo e no espaço que deve seu título a uma canção de Francis Poulenc de 1935. 

Encante-se imediatamente saboreando as cores múltiplas desta voz privilegiada em Erlkönig, ou Rei dos Elfo, quintessência do universo refinado dos “lieder”: os versos de Goethe musicados por Franz Schubert exigem do intérprete que encarne quatro personagens distintos: o pai, o filho, a morte e o narrador. Ao todo, 22 faixas variadíssimas, que vão de Fauré a Poulenc, mas incluem música popular, como Septembre, da cantora pop francesa Barbara, Alfonsina y el mar, de Ariel Ramírez, canção da Missa Criola popularíssima gravada por Mercedes Sosa; e até Manhã de Carnaval, de Luiz Bonfá. Outra presença brasileira é a do grande Dilermando Reis e seu Xodó da Baiana, interpretado por Thibaut ao violão.

 

A música brasileira se espraia com inusitada diversidade por dois outros “álbuns” que merecem ser revisitados com frequência. No primeiro, “Um Clarone Brasileiro”, Mário Marques, da Orquestra Sinfônica de Campinas, toca o “contrabaixo” dos quintetos de clarinetes. O clarone é o clarinete-baixo. Surgiu no início do século XIX e integra orquestras sinfônicas, embora não seja regularmente inserido em orquestrações. Marques tem razão ao afirmar que “o clarone é um instrumento novo, ainda pouco conhecido do grande público e que tem a maioria do seu repertório fincada na música de vanguarda. Quis trazê-lo para a música brasileira nacionalista, justamente onde me sinto mais à vontade. Gosto da mistura entre as chamadas músicas erudita e popular”.

E é isso mesmo que ele entrega nesta viagem de surpresas e descobertas. O repertório é de encomendas feitas a compositores atuantes, como Edmundo Villani-Cortes (egresso da música popular), Ernst Mahle e outros saudavelmente ecléticos como André Mehmari e Hudson Nogueira,  A nova geração do choro está presente, com o sempre excelente 7 cordas Gian Correia, Fernando de Oliveira e Wagner Ortiz. Entre as peças que mais me impactaram está a sacudida Moacirsantosiana 23, tributo de Carrilho a um dos mais notáveis gênios da música brasileira de todas as épocas.

Fazendo o violoncelo “falar”

O violoncelista paraibano Raiff Dantas Barreto, atualmente primeiro cello da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal de São Paulo, é um dos mais criativos entre os músicos completos que atuam no país. Seu “álbum” (Azul Music) intitula-se “Lieder ohne Worte”, em alemão mesmo, ou seja, canções sem palavras, mas não aquelas do conhecido ciclo para piano de Mendelssohn. Aqui ele mergulha, ao lado do pianista Flávio Augusto, no universo de vários entre os mais belos “lieder”  românticos do século XIX. O destaque maior vai para um dos mais celebrados ciclos de canções, Dichterliebe, o amor do poeta, de Robert Schumann. 

Gravar a versão sem palavras deste ciclo foi um sonho que ele acalentava desde quando estudou no Conservatório de Parma, na Itália. “Meu querido professor Enrico Contini me mostrou o mundo maravilhoso dos lieder. Lembro-me bem de uma audição de sua classe em que ele nos fez tocar estas canções, mas tínhamos que traduzi-las do alemão para o italiano para que, nas suas palavras, ‘entendêssemos como os grandes compositores, em especial Schumann, usavam os textos poéticos nas suas obras’. Foi nesta época que me apaixonei pelo Dichterliebe.

 

De fato, quem não entende alemão deixa-se seduzir pelas melodias, descarta os poemas de Heinrich Heine (1797-1856), verdadeiras obras-primas. Para fazer o violoncelo “falar”, Raiff  conta que “utilizei diferentes articulações no instrumento, respeitando a pronúncia das palavras existentes nas obras originais”. Além das 16 canções do ciclo, eles interpretam sete lieder de Schubert (incluindo a famosa Serenata e a emocionante ode à música An die Musik) e cinco de Brahms, compositor injustamente pouco lembrado pelas canções maravilhosas como Dein blaues Auge, Teus olhos azuis, em que ele se aproxima bastante do universo do Schumann de O Amor do Poeta. Puro encantamento.

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