Livro As Sociedades Musicais Francesas do Início do Século XX, de Danieli Longo Benedetti, ilumina o início de um período extremamente fecundo para a música francesa, que faria com que ela tivesse um protagonismo há tempos perdido
No livro referencial A música moderna, Paul Griffiths abre com uma afirmativa peremptória: “Se a música moderna teve um ponto de partida preciso, podemos identificá-lo na melodia para flauta que abre o Prelúdio para a tarde de um fauno, de Claude Debussy”. Composta entre 1892 e 1894 a obra, segundo Griffiths, “liberta-se das raízes da tonalidade diatônica (maior-menor), o que não significa que seja atonal, mas apenas que as velhas relações harmônicas já não têm caráter imperativo”.
O Prelúdio é executado com alguma frequência em nossas salas de concerto. É pouco provável que, ao escutar os sons diáfanos da flauta de abertura, o ouvinte se pergunte acerca das condições de produção da obra. O impacto que a peça causou e a importância que ela viria a ter não são (apenas) decorrentes de um momento de epifania de seu compositor, mas de um contexto político e social bastante específico.
Por sorte, ainda se pode contar com a pesquisa científica para alargar nossos horizontes. É isso que faz a pianista e professora Danieli Longo Benedetti, em seu recém-lançado As Sociedades Musicais Francesas do Início do Século XX, livro fruto de pesquisas de pós-doutorado.
Abordando um período que vai da derrota francesa na Guerra Franco-Prussiana, em 1871, até a primeira Grande Guerra, em 1914, ela mostra como o contexto político europeu motivou compositores a se organizar em torno de uma entidade de classe.
Muitos músicos franceses arriscaram suas vidas durante o conflito franco-prussiano, como Gabriel Fauré, Henri Duparc, Jules Massenet, Vincent d’Indy, Bizet e Saint-Saëns. Traumatizados e humilhados pela derrota, viam na união de forças uma forma de reforçar a identidade nacional por meio da música, ao mesmo tempo afastando a forte influência germânica. É assim que nasce a Societé Nationale de Musique (SNM), ainda em 1871, que teria desdobramentos decisivos para a música francesa e para os próprios rumos da música moderna.
“Para os compositores franceses do final do século XIX, a criação dessa associação representou a possibilidade de se tornarem visíveis e conhecidos, tendo suas composições executadas”, afirma a autora. Foi dentro da temporada de concertos da SNM que diversas obras de Fauré, Bizet, Saint-Saëns ou Ravel tiveram sua primeira audição, incluindo o Prelúdio para a tarde de um fauno, de Debussy, que estreou no concerto do dia 23 de dezembro de 1894, na abertura da temporada 1894-95.
Há muitos pormenores nessa história, cuja riqueza de detalhes Danieli recupera por meio de um trabalho minucioso em arquivos franceses. Os dados e argumentos se baseiam em ampla documentação
Os desdobramentos dessa história são muitos, e incluem a ativa atuação de Vincent d’Indy como presidente da SNM e a fundação, por ele e outros compositores, da influente Schola Cantorum, que iria rivalizar com o Conservatório de Paris e tomaria tal influência dentro da SNM que levaria compositores descontentes, liderados por Maurice Ravel, a fundar uma entidade dissidente: a Societé Musicale Indépendante (SMI). Se a SNM privilegiava em suas audições alunos ou adeptos da estética pregada pela Schola Cantorum – o desenvolvimento cíclico dos temas, a utilização das grandes formas tradicionais e técnicas do passado como o contraponto e a fuga – a SMI defendia uma abertura a toda forma de pesquisa em matéria de linguagem musical.
Há muitos pormenores nessa história, cuja riqueza de detalhes Danieli recupera por meio de um trabalho minucioso em arquivos franceses. Os dados e argumentos se baseiam em ampla documentação, coletada em arquivos como as bibliotecas François Mitterand e Nacional da França ou o acervo Richelieu-Louvois.
Trabalhando com essa documentação primária, a pesquisadora realiza um verdadeiro trabalho de investigação, refazendo os passos e recontando as intrigas e disputas internas de cada uma das instituições abordadas. Dessa forma, joga luzes, traz novidades, constrói hipóteses.
O resultado é que o livro ilumina o início de um período extremamente fecundo para a música francesa – e sobre o qual há pouca literatura em língua portuguesa com tal riqueza de detalhes –, e que faria com que ela tivesse um protagonismo há tempos perdido, abrindo as portas da música moderna e influindo decisivamente na música do século XX.
O livro “As Sociedades Musicais Francesas do Início do Século XX” está disponível na Loja CLÁSSICOS; clique aqui.
Leia mais
Notícias Semana Internacional de Música de Câmara realiza nona edição com debate e recitais
Notícias Evento revela bastidores dos teatros e expõe dificuldades do setor na pandemia
Colunistas Leia outros textos de Camila Fresca
É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.