Pesquisa e poesia se unem no retrato do violão brasileiro da passagem do século XIX para o século XX

por Camila Fresca 17/02/2024

Além das muitas comemorações que aconteceram no último dia 25 de janeiro, por ocasião do aniversário de fundação de São Paulo, a cidade ganhou também um presente que não pode passar despercebido: o álbum Violões na velha São Paulo, da violonista e pesquisadora Flávia Prando. 

Admirado em todo o mundo, o violão brasileiro é uma das mais fortes tradições de nossa música, seja ela erudita ou popular: as composições de Villa-Lobos para violão solo estão entre o que de mais importante se escreveu para o instrumento no século XX; alguns dos maiores violonistas da atualidade são brasileiros (para ficar em pouquíssimos nomes: Fabio Zanon, Brasil Guitar Duo, Duo Siqueira Lima e uma nova geração liderada pelo talento excepcional de Gabriele Leite). A comunidade violonística brasileira é dinâmica e isto inclui também pesquisadores, como Marcia Taborda, Humberto Amorim, Gilson Antunes e a própria Flávia Prando.

Por meio de uma investigação cuidadosa, Flávia devolve à circulação uma parte importante da história do violão brasileiro: o nome, a trajetória e as obras dos primeiros violonistas a atuarem profissionalmente em São Paulo, a partir da segunda metade do século XIX. Com isso, nos ajuda a entender de que forma o instrumento foi ganhando a importância que desfruta até hoje na cultura brasileira. 

Mais do que um disco, no entanto, trata-se de um projeto que se desdobrou tendo como ponto de partida uma pesquisa de doutorado. Intitulado “O mundo do violão em São Paulo: processos de consolidação do circuito do instrumento na cidade (1890-1932)”, o trabalho recebeu menção honrosa no Prêmio Silvio Romero e deu origem a um álbum de partitura em três volumes, lançados entre 2022 e 2023 (e que levam o mesmo nome do disco), a programas de rádio e TV e, agora, ao lançamento de um disco. É uma bela trajetória, que nasce no universo restrito e especializado da academia (a tese foi defendida na ECA-USP) e caminha em direção à difusão e à popularização do conhecimento, mesclando educação e entretenimento.

Segundo Flávia, o relativo isolamento de São Paulo até o século XIX não inviabilizou a atividade musical paulistana, mas fez com que ela se desenvolvesse com uma linguagem própria (como também ocorreu em outras regiões do país).  “As composições dos violonistas de São Paulo mostram sensíveis diferenças em relação aos choros cultivados no Rio de Janeiro” afirma. “Pela instrumentação pode-se ter ideia de quanto o choro paulista caminhava mais para o romântico, para o clima de serenata, enquanto no Rio o objetivo era o balanço e a brejeirice”. Para a pesquisadora, o rápido processo de modernização da cidade, aliado a práticas rurais arraigadas, resultou “no surgimento de uma genealogia poético-musical baseada em um imaginário que reunia nostalgia, melancolia e saudade, que foram externadas na produção instrumental local”. 

 

De fato, é isso o que se nota ao se ouvir as valsas, mazurcas, gavotas e choros presentes no disco. Como já é conhecido em relação ao piano desse mesmo período, os compositores e intérpretes de então dialogavam de forma dinâmica com o repertório de salão europeu, transformando e estilizando danças como valsas, polcas e mazurcas a partir de suas experiências e práticas locais. Dessa forma, “esses músicos tornaram possível a identificação de características específicas na produção musical do violão paulistano”, explica Flávia. Outra característica desse repertório é o terreno poroso em que se encontram, entre o erudito e o popular.

Violões na velha São Paulo tem obras como a bela valsa Recuerdos de Pernambuco, do espanhol Gil-Orozco (1857 – 1916), que viveu em São Paulo por 16 anos e foi responsável pelo primeiro recital de violão solo da cidade. “Gil-Orozco foi fundamental para a história do violão paulistano. Em 1906, ele participou de um recital no Salão Steinway [no Conservatório Dramático e Musical] ao lado dos mais importantes músicos locais”, informa Flávia, chamando a atenção de que essa é “uma prática que caminha na contramão do discurso dominante da historiografia nacional, que posicionou o violão, quase exclusivamente, como instrumento marginalizado na sociedade brasileira”.

Outra das peças mais bonitas do álbum é a gavota Edith, de João Avelino de Camargo (1880-1936), nome hoje esquecido e que parece ter iniciado sua atividade musical no final do século XIX. “Juntamente com Theotônio Correa e Melinho de Piracicaba, João Avelino formou o primeiro trio de violões brasileiro que se tem notícia, em 1929, os Três Sustenidos”, revela a pesquisadora. 

A partir de meados da década de 1920, o repertório de valsas, mazurcas e gavotas começa a sofrer seu processo final de nacionalização ao conviver e ao mesmo tempo se transmutar nos gêneros que até hoje caracterizam nossa música popular, como o choro, o cateretê e o samba. E são choros que encerram o disco, como Cruzeiro, de Theotonio Côrrea (1881-1941), músico que participou do início da radiofonia e da fonografia elétrica em São Paulo. 

O álbum ainda nos revela compositores como Theotonio Gonçalves Côrrea (1846-1892), pai de Theotonio Côrrea e que participou da primeira apresentação pública com violão registrada pela imprensa da cidade, em 1878; Mário Amaral (c.1895-1926) violonista e compositor paulistano que frequentava o circulo dos modernistas e era primo de Tarsila do Amaral; ou ainda Antonio Estanislau do Amaral (1869-1938). Tio de Tarsila e Mário, era botânico e foi, junto com seu irmão José, proprietário do Teatro São José.  
Reunindo em si as qualidades de pesquisadora e intérprete, Flávia Prando traduz toda essa informação em música de alta execução, sensível ao conteúdo poético e atenta às questões estilísticas. 

A violonista Flavia Prando [Reprodução/YouTube]
A violonista Flavia Prando [Reprodução/YouTube]

 

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