A primeira surpresa – e não o primeiro dos sete pecados – foi a feliz ideia de se colocar como prólogo à ópera o Concerto para violino de Weill
Fui à ópera para me lembrar que estou viva. Não é pouca coisa no Brasil atual. Neste momento de retomadas graduais cada ida ao teatro é para mim ritual e motivo de enorme comoção. Diante da longa pandemia, diante de todos os horrores aos quais temos sido submetidos, da miséria latente, da nossa vergonha perante o mundo, fui à ópera reencontrar Brecht, Weill e tive a sorte de vê-los conversar deliciosamente com Rogério Sganzerla e Helena Ignez. A ópera em questão foi Os sete pecados capitais, no Theatro São Pedro, com direção cênica de Alexandre Dal Farra, sua estreia no gênero, e regência do maestro Ira Levin.
Os sete pecados são vivenciados durante a jornada de Anna, personagem genialmente construído como um duplo, na luta por levantar dinheiro para a construção de uma casa para sua família. Anna é dual, duas irmãs que se apoiam e se completam em suas diferenças, exatamente assim como nós mulheres curiosas e portanto pecadoras (não é mesmo, Eva e Lilith?). Só uma das duas Annas canta, e como canta! Denise de Freitas chegou a me deixar sem ar com sua vocalidade livre, atuante e entregue. Mas eu dizia, só uma delas canta e a outra serpenteia e se deixa atropelar pela vida que dela só exige, como sempre, coragem. A família, de longe, canta basicamente sempre em polifonia como um coro grego ou um dedo de deus apontando, jogando pedras e esperando a salvação pelas mãos de Geni.
A primeira surpresa – e não o primeiro dos sete pecados – foi a feliz ideia de se colocar como prólogo à ópera o Concerto para violino op.12 de Weill interpretado com total esmero pelo violinista Cláudio Cruz e ensemble de sopros. A tendência de lidar com as obras históricas como matérias vivas e flexíveis, que podem ser manipuladas e articuladas entre si, é uma tônica na atual cena operística mundial, vide os Castelluccis e Sellars em atividade. Numa obra brechtiana tal ousadia faz ainda mais sentido e chega a comover. Comove inclusive porque é neste prólogo-concerto para violino que nós, público, somos convidados a nos aproximarmos da principal referência afetiva e estética da montagem: o icônico filme de Rogério Sganzerla “A mulher de todos” com a diva suprema Helena Ignez. Eu, criada nas sessões do Festival de Cinema de Brasília, logo colhi a dica. Anna, Helena, Ângela Carne Osso, Eva, Macabéia... este mundo é nosso. Quero dizer, este mundo será nosso, apesar dos pesares.
Dal Farra propõe então que o cinema inunde a cena e incorpora o estranho objeto de desejo (referência ao continente obscuro de Freud?) como elemento de palco. Tive, confesso, um tanto de preconceito inicial quando vi surgir em cena um microfone. Não por purismo operístico, mas por achar que certos recursos, como microfone e câmera-seguindo-atriz, estejam um tanto gastos pelo teatro contemporâneo. Mas me dobrei e percebi que tais elementos eram como uma piscadela do encenador ao público paulistano, como que dizendo: estou aqui propondo uma ponte entre a cena teatral e a operística. Gosto. E acho que Brecht também gostaria, porque este é um dos pontos mais fundamentais da poética de seu teatro épico: o dramaturgo ou compositor deve se esforçar para lembrar constantemente à plateia que ela está assistindo a uma ficção, o “efeito de distanciamento” como uma necessidade anti-catártica e até política.
Considero louvável o desejo do Theatro São Pedro de alargar a percepção do gênero operístico ao programar uma ópera desviante como Os sete pecados capitais. Não é a primeira vez que este teatro arrisca e chacoalha o público de ópera. Afinal, o maravilhamento está na essência do gênero ao longo da história da ópera. Louvável também que se proponham novas presenças como a de Dal Farra, um encenador que se lança no mundo da ópera munido de grande arcabouço de criação teatral e (fundamental para tal empreitada) conhecimento musical. O Brasil tem um público sagaz que frequenta teatros, mostras experimentais, festivais e estabelecer uma ponte entre a ópera e este público é fundamental e urgente. Urgente também é ouvirmos mais vozes como a de Denise de Freitas, que está no auge de sua potência e que respondeu deliciosamente às provocações da encenação dos Sete pecados e ao jogo com a genial atriz Gilda Nomacce. Além dela me surpreendeu a presença-voz do baixo Anderson Barbosa no papel de mãe. Sublime também me pareceu a direção musical do maestro Ira à frente da orquestra, que não teve medo de exageros de dinâmicas dignos de música tão bem escrita como esta de Weill.
As duas casas de ópera da cidade de São Paulo se encontram no centro da cidade, é inevitável vê-las ali como mementos da realidade das ruas, da vida, das lutas e injustiças. Estes espaços são nossas incubadoras de sonhos, utopias e provocações estéticas, éticas, amorosas. Assim eles devem ser, croce e delizia. As questões estão lançadas como dados. O que queremos dizer com a ópera em 2021? O que a ópera pode provocar em cada um de nós e em nossas coletividades? Para quê ir à ópera? Os teatros que não se propuserem a participar desses questionamentos estarão fora do jogo da realidade. O São Pedro já provou estar dentro.
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Comentários
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Ligiana, eu fiquei até…
Ligiana, eu fiquei até emocionado lendo sua percepção, não porque ela contempla minha impressão da obra, mas porque você reitera a potência de uma obra dessa, nesse momento, e a importância de retomar esses lugares. Châpeau