Bryn Terfel na Sala São Paulo: ópera cantada com apuro de lied

Há cantores. E há artistas que fazem do canto o veículo de sua arte. O baixo-barítono galês Bryn Terfel escolheu o Brasil para comemorar seus 58 anos de idade (em 9 de novembro), e quem ganhou o presente fomos nós. O concerto de encerramento da temporada do Mozarteum Brasileiro foi uma aula magna não apenas de canto, como de domínio absoluto de palco e das qualidades que fazem um artista completo.

Sim, ele entra nos papéis que resolve cantar, não apenas incorporando gestos cênicos, como revestindo cada frase musical de uma intenção dramática determinada e precisa. Sim, ele canta em cada língua como se fosse o seu galês materno, com uma nitidez que permitiria anotar o texto de cada uma das obras. Sim, ele sabe conversar com o público. Sim, ele tem uma rara atenção para com a parte de plateia que se senta nos lugares do coro, atrás da orquestra, lembrando-se de se virar naquela direção e cantar também para estes espectadores. E sim, sua voz está em plena forma, cheia de cor e ressonância em todos os registros. 

Se hoje utilizamos a categoria específica de baixo-barítono para classificar um registro vocal, é muito por “culpa” de Richard Wagner, que escreveu gloriosos papéis para esse tipo de voz. Assim, a primeira metade da apresentação brasileira de Terfel foi, sobretudo, wagneriana. Ele começou com Was duftet doch der Flieder, o monólogo do segundo ato de Os Mestres Cantores de Nuremberg, em que o personagem Hans Sachs demonstra uma sensibilidade, sabedoria e generosidade que os que conhecem Terfel fora do palco afirmam coincidirem com suas qualidades pessoais.

Após essa demonstração de sofisticação e senso de estilo, Terfel cantou o momento que ficará nas memórias de todos que compareceram à Sala São Paulo na última quarta-feira, dia 8: o final da ópera A Valquíria.

Nossa principal sala de concertos tem algo de Valhalla – não apenas na apolínea imponência arquitetônica que recende a templo, como em sua vontade de isolamento de um entorno humano, demasiado humano que se recusa terminantemente a ser invisível. Neste suntuoso bunker cultural, Terfel foi o mais divino dos Wotans. Sua voz tinha que “competir” com uma orquestra enorme e ruidosa que não estava soterrada em um fosso, como acontece em produções de ópera, mas sim em cima do palco – um volume, portanto, ainda maior.

Terfel “disse” seu texto como o mais refinado dos atores, manipulando os fonemas germânicos em fina ourivesaria. Não é tanto a dicção clara e a articulação idiomática que impressionam, mas sobretudo a maneira como as palavras e sua semântica guiam as escolhas musicais

Porém, por sortilégios de projeção e emissão, conseguiu enviá-la a todos os recantos da Sala São Paulo – e operar prodígios de sutileza. Pois a primeira parte desta cena mostra um Wotan fragilizado, confrontado com as limitações de um poder que ele imaginava absoluto, tendo de dar adeus à sua dileta filha, a valquíria Brünnhilde.

Terfel “disse” seu texto como o mais refinado dos atores, manipulando os fonemas germânicos em fina ourivesaria. Não é tanto a dicção clara e a articulação idiomática que impressionam, mas sobretudo a maneira como as palavras e sua semântica guiam as escolhas musicais. É ópera cantada com apuro de lied – algo como uma Winterreise com anabolizantes.

Sim, pois o final da cena é uma poderosa evocação do semideus Loge, para que envolva a adormecida Brünnhilde em fogo eterno e indevassável. Aí entrou em cena outro Terfel – possante, estentóreo, vigoroso. O “fogo mágico” da cena era, sobretudo, a chama interna que anima um dos intérpretes mais completos da atualidade.

Depois disso, o que poderia vir? Um intervalo, e um programa de itens pequenos, para que Bryn pudesse nos mostrar outros traços de sua personalidade artística. Começou com uma trinca de “malvados favoritos”: Pizarro, o maligno carcereiro do Fidelio, de Beethoven, e duas encarnações lúdicas do Mefisto de Goethe. Em Le veau d’or, do Fausto, de Gounod, Terfel permitiu-se bater palmas. Antes de Son lo spirito che nega, do Mefistofele, de Boito, ele advertiu: sou filho de fazendeiro, e os cães que guardavam as ovelhas se assustavam com essa ária. E acrescentou à sua interpretação assobios, que ele pedia à plateia para repetir.

O clima de bis parecia preparado, e instaurou-se de vez quando a Orquestra Acadêmica Mozarteum Brasileiro tocou a abertura de Orfeu no Inferno, de Offenbach. Após solos executados por refinamento por Isaac Andrade (violoncelo) e Wellington Rebouças (violino), veio o famigerado cancan – que o maestro Carlos Moreno incentivou o público a acompanhar com palmas.

Daí Terfel brindou a plateia ainda com quatro canções das ilhas britânicas em arranjo de Chris Hazell (Passing By, Danny Boy – arrematada com um lindo pianíssimo –, Ar Hyd y Nos e Loch Lomond) e If I were a rich man, de O violinista no telhado, de Jerry Bock – com toda a atenção ao texto falado requerida pelo gênero dos musicais. Depois, como bis propriamente dito, vieram a galesa Suo Gân e Some Enchanted Evening, do musical South Pacific, de Rodgers e Hammerstein – se levarmos o título ao pé da letra, o fecho adequado de uma noite verdadeiramente encantada.

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Bryn Terfel no encerramento do concerto na Sala São Paulo [Cortesia William Pereira]
Bryn Terfel no encerramento do concerto na Sala São Paulo [William Pereira]

 

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