Poucos compositores da segunda metade do século XX foram mais originais do que o santista José Antônio Rezende de Almeida Prado (1943-2010). Dono de uma musicalidade exuberante e de uma imaginação fértil e sem fronteiras, Prado foi um compositor prolífico, que manejava a paleta orquestral com o mesmo virtuosismo que manifestava ao seu instrumento primordial, o piano. E o disco que acaba de sair na inestimável série A Música do Brasil, do selo Naxos, é a melhor síntese e introdução ao universo de Almeida como orquestrador, trazendo a obra que lançou o compositor no cenário internacional, Pequenos funerais cantantes ao poeta Carlos Maria de Araújo, de 1969, e sua mais impactante criação para orquestra, a Sinfonia dos Orixás, de 1984-5.
Prado havia recém se libertado do nacionalismo de Camargo Guarnieri, que moldou sua produção inicial, quando começou a absorver a produção das vanguardas europeias da década de 1960, e descobriu a poesia de Hilda Hilst (1930-2004) – mais especificamente, as Trovas de muito amor para um amado senhor, de onde extrairia textos para canções dedicadas a Anna Maria Kieffer, em 1964. Treze anos mais jovem, o compositor iniciante quis conhecer a poeta já consagrada. Descobriram-se primos distantes. E esses dois criadores decisivos da cultura brasileira comunicavam-se de forma bastante original: Almeida mandava cartas a Hilda, que respondia por telefone.
Em uma delas, ele relata a gênese dos Pequenos funerais cantantes: “Já comecei a fazer a música para coral 2 vozes e percussão, com sinos e tudo. Já fiz a entrada em estilo gregoriano e, ao mesmo tempo, contemporâneo; ao todo compus umas 4 ou cinco; ainda esboçadas; outras inteiras, mas já em vivência e pretendo fazer uma grande obra – dedicada a você! Há nesta minha música dos funerais uma angústia diferente, triste, uma desolação, que prepara à luminosidade do Corpo de Luz, mais amplo, liberto das dissonâncias terríveis do Corpo de Terra”. E arremata: “Você chega nesta obra, Hilda, a um plano intenso, de dizer muito com poucas palavras. É maravilhoso compor com palavras suas, são musicáveis”.
Poderosamente expressivos no manejo dos recursos orquestrais, os 'Pequenos funerais cantantes' propiciaram o ponto de virada na carreira de Almeida Prado
O poema de Hilst remete à trágica morte do poeta luso Carlos Maria de Araújo, em um acidente de avião, em 1962. A fusão entre “estilo gregoriano e contemporâneo” prometida pelo compositor é operada com extrema engenhosidade, muito antes de essa mistura se tornar moda. Às boas prestações dos solistas Clarissa Cabral (mezzo-soprano) e Sabah Teixeira (baixo-barítono) soma-se a excelência do Coro da Osesp, que alia solidez técnica à articulação clara do texto em português, passando com segurança pelos diversos estilos evocados pelo compositor.
Poderosamente expressivos no manejo dos recursos orquestrais, os Pequenos funerais cantantes propiciaram o ponto de virada na carreira de Almeida Prado: ao conquistar o primeiro lugar no I Festival da Guanabara, em 1969, o compositor pôde cruzar o Atlântico, estudando em Paris com mestres do quilate de Nadia Boulanger (1887-1979) e Olivier Messiaen (1908-1992).
Com este último, Prado compartilhava várias características, como a sinestesia, o domínio do teclado e um fervor religioso entrelaçado à sensualidade. Talvez não seja completamente despropositado enxergar na Sinfonia dos Orixás, guardadas as devidas proporções, uma resposta brasileira, bastante original e individual, à Sinfonia Turangalîla de seu professor.
Se Messiaen foi buscar no sânscrito a inspiração para sua obra da década de 1940, Prado, compondo quatro décadas mais tarde para o décimo aniversário da Orquestra Sinfônica de Campinas (que então, graças à gestão visionária de seu amigo Benito Juarez, era uma das mais ativas e dinâmicas do Brasil), resolveu basear-se no candomblé.
A religiosidade afro-brasileira é uma marca dessa fase de Almeida Prado, manifestando-se especialmente em 1985, quando, além de concluir a Sinfonia dos Orixás, ele compôs O livro mágico de Xangô, para violino e violoncelo, Livro de Oxóssi ou Cantos de Oxóssi, para quarteto de flauta, o Poesilúdio nº 12 – Noites de Iansã, para piano, e a Sonata nº 5 – “Omulú”, também para piano.
De confissão católica, Prado afirmou, em entrevista: “O afro-brasileiro não foi uma experiência mística, mas estética. Não tenho interesse nessas religiões enquanto atos de fé. Acho muito bonito o ritual do Candomblé, as roupas, os temas, o obsessional, os tambores, a ligação com a terra, muito primitiva”.
Sob a batuta de Thomson, a Osesp soa como a gloriosa e cosmopolita orquestra brasileira que ela pode ser. E Almeida Prado recebe a excelência que sempre mereceu
No excelente texto de encarte do CD da Naxos, Carlos Fiorini explica que “a visão de Almeida Prado sobre os orixás, segundo a qual para cada orixá há um santo correspondente, é carregada de sincretismo com o catolicismo, religião da qual era adepto. Com isso, deixou de incluir na obra Exu, pois, segundo os católicos, ele representaria o diabo. No entanto, para a crença iorubana, a invocação do Exu é fundamental para o rito, pois é ele quem faz a ligação entre os homens e os orixás. Assim, na estreia da Sinfonia, foi realizada uma improvisação com atabaques em homenagem a Exu, que foi autorizada pelo compositor e, cuja inclusão permanece opcional nas execuções da obra”.
Pois a Saudação a Exu está presente na gravação da obra pela Osesp – o que não deixa de ser um ato de coragem, levando em conta a intolerância religiosa dos tempos que correm. Ao longo de 50 minutos de inspiração incessante e miraculosamente variegada, Prado urde um mosaico orquestral de ritmos contagiantes, uma intricada mandala de planos instrumentais e afetos, a manifestação de uma personalidade musical assertiva através de uma linguagem musical vigorosa e para lá de peculiar.
Música deste quilate merece uma leitura vibrante, e Neil Thomson entrega-a com a meticulosidade e o entusiasmo que vêm constituindo a marca de suas interpretações e gravações do repertório brasileiro. Quisera eu que nossos compatriotas da regência demonstrassem apuro, respeito e entusiasmo equivalentes ao desse britânico com as partitura nacionais. Sob sua batuta, a Osesp soa como a gloriosa e cosmopolita orquestra brasileira que ela pode ser. E Almeida Prado recebe a excelência que sempre mereceu.
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