A compositora polonesa Grażyna Bacewicz (1909-1969) já foi abordada em textos recentes do Site CONCERTO (aqui e aqui) . Na semana passada, ela foi também tema de um recital do Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo, que realizou a segunda apresentação da série Grandes Quintetos. Mais longevo conjunto camerístico brasileiro e um dos mais importantes do país, o Quarteto da Cidade tem seu público cativo, que é variado, mas nele se destacam estudantes de música (sobretudo os de cordas, identificados pelos instrumentos que carregam consigo) e pessoas mais velhas.
Na última quinta-feira, dia 4, esse público, em clima descontraído, enchia a Sala do Conservatório, na Praça das Artes, para ouvir duas obras de Bacewicz: o Quarteto nº 4 e o Quinteto com piano nº 1. Não vou me alongar em dados biográficos e nas dificuldades de gênero que certamente a compositora teve de vencer, pois há material suficiente nos dois artigos que mencionei. Retomo apenas pontos podem nos ajudar a falar das obras apresentadas: em 1928, quando tinha 18 anos, Bacewicz entrou na sala da classe de composição no Conservatório de Varsóvia e ouviu a frase “Está perdida? Aqui é a classe de composição, garota!”. Ela seguiu em frente, formando-se no conservatório em composição e violino, em 1932, e seguindo para Paris, onde estudou, entre outros, com Nadia Boulanger e Carl Flesh.
Seu catálogo de obras é impressionante e inclui quatro sinfonias, uma extensa produção camerística e para piano solo, bem como música incidental para filmes e transmissões de rádio. Como exímia violinista que era, Grażyna Bacewicz deu atenção à família das cordas, compondo sete concertos para violino, um para viola, dois para cello e sete quartetos de cordas. Os quartetos foram escritos entre 1938 e 1965 e combinam emoção, grande originalidade e um equilíbrio entre a forma tradicional e ousadias de linguagem.
O Quarteto nº 4 é o mais conhecido e mais frequentemente executado dentre eles. Foi escrito em 1951, para um concurso de composição de quarteto de cordas organizado em Liège, na Bélgica, no qual ganhou o primeiro prêmio. Com três movimentos, a peça traz melodias do folclore polaco numa sequência em que dois movimentos lentos, com uma escrita para cordas que traz achados admiráveis – menos por uma novidade absoluta e mais pela forma de utilização de alguns recursos – prenunciam o Allegro Giocoso final, bem-humorado, que por vezes remete aos quartetos de Haydn. No geral, a obra soa moderna sem abandonar o “drama” romântico e a tonalidade.
Se Grażyna Bacewicz é raridade em nossas salas de concerto, a obra é velha conhecida do Quarteto da Cidade: Zygmunt Kubala, violoncelista polonês que integrou o grupo entre 1979 e 1991, trouxe a partitura do quarteto debaixo do braço há quase quatro décadas, em uma de suas viagens ao país natal. Talvez o único a estrear na peça tenha sido justamente o cellista atual do grupo, Rafael Cesario, que ingressou em 2018. Rafael é um músico extraordinário e nos mostrou isso desde o momento em que seu instrumento conduz a frase principal da obra, logo no início do primeiro Andante.
Para além de seu refinamento técnico, o Quarteto da Cidade nos deu uma interpretação musicalmente amadurecida, deixando claro os diálogos entre os instrumentos e nos guiando com segurança e intimidade através do discurso musical. Quem sabe se daqui a algum tempo não teremos o prazer de ouvir outros quartetos de Bacewicz com o Quarteto da Cidade? Quem sabe, até a integral deles? A compositora tem ganhado visibilidade e há pelo menos três gravações com a integral da obra, duas delas recentes. Não é de se duvidar que daqui a algum tempo esses quartetos se coloquem ao lado das outras grandes obras do gênero escritas no século XX.
Grażyna Bacewicz também compôs dois quintetos com piano, o primeiro no mesmo momento em que terminava o Quarteto nª 4. Regra geral, as obras compartilham características: o uso de temas folclóricos e uma estrutura tradicional (que pode ser caracterizada como neoclássica) que não deixa de abrir espaço para soluções originais, por vezes arrojadas.
Aqui, o Quarteto da Cidade de São Paulo contou com a presença luxuosa de Karin Fernandes, uma das mais ativas pianistas brasileiras da atualidade. Karin é uma artista que não tem medo de correr riscos e cuja sonoridade potente não atropela os momentos de sutileza e introspecção. A obra tem quatro movimentos e, a uma primeira audição, os dois primeiros (Moderato molto espressivo / Presto) me pareceram mais convencionais, a peça ficando mais interessante a medida que o tempo corre – de repente, o terceiro movimento, Grave, nos leva a uma inesperada interioridade que conduz a obra a um caminho não vislumbrado até então.
A TV Cultura registrou o concerto, que deve integrar sua programação em breve. Recomendo a todos aqueles que não puderam conferir ao vivo que escutem a excelente interpretação do Quarteto da Cidade para essas surpreendentes obras.
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