Em ‘A raposinha astuta’, uma realidade fantástica... ou seria uma fantasia realista?

por João Luiz Sampaio 31/07/2023

André Heller Lopes e Ira Levin são os responsáveis por inserir a obra de Leós Janácek no repertório dos teatros brasileiros. Em 2003, o maestro programou Jenufa em sua gestão à frente do Theatro Municipal de São Paulo. Quatro anos depois, o diretor encenou no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, O diário de um desaparecido. Quando Heller dirigiu o Municipal do Rio, encenou também Jenufa. E s dois se uniram então nas temporadas do Theatro São Pedro, com Katia Kabanova, O caso Makropulos e, agora com A raposinha astuta.

A possibilidade ou não de classificar Janácek como um compositor verista tem atiçado a mente de pesquisadores há um bom tempo. Concorreriam em favor da ideia a força das paixões, o estilo do canto – que nasce da observação que o compositor faz da fala –, o retrato preciso e sem rodeios que perseguia na caracterização das personagens. Por outro lado, em uma ópera como A raposinha astuta, em que animais e seres humanos convivem e de alguma forma se relacionam, como ver o real como elemento fundador? 

Tiina Vainiomäki, da Universidade de Helsinque, se dedicou a encontrar uma resposta. A raposinha, ela diz, “é uma ópera realista e fantástica ao mesmo tempo”, escreve. “Afinal, que há de realista em animais cantores? E, no entanto, a vida de uma floresta e o ciclo da vida são retratados de maneira tão brilhante. Especialmente quando se considera as óperas de Janáček, muitas delas parecem conseguir conectar os dois lados da moeda: o fantástico e o realista (para citar outros dois exemplos, O Caso Makropulos e sua diva de 337 anos e Da Casa dos Mortos, com seus grilhões de prisioneiros).”

Outros preferem falar em “suprarrealismo” no caso da Raposinha. O conceito faria referência “a um princípio elevado que reina sobre a realidade natural e a realidade humana”. “Este princípio, no entanto, não é espiritual ou metafísico. Sua essência reside em um instinto irresistível em direção à vida, em direção ao amor e em direção a um fluxo constante entre nascimento e a morte, em um ciclo que se repete eternamente”, afirma Vainiomäki. A palavra-chave, aqui, seria instinto, um impulso interior que leva à sobrevivência e, em certo sentido, fala de inevitabilidade – daí talvez a decisão de Janácek de, em momentos como a morte da Raposinha, evitar o estardalhaço ou o páthos, como diz John Tyrrell, citado por Irineu Franco Perpetuo em seu texto de programa. A vida, afinal, é o que é.

 

Seja como for, é um desafio a qualquer encenação optar por um lado da moeda. Heller-Lopes afirma, em texto também publicado no programa, que “como uma das questões essenciais da obra é o elemento de humanos e animais conversando, achei que interpretar esse elemento fantástico através da estética surrealista era um caminho muito rico”. Para tanto, os cenários de Renato Theobaldo, assim como alguns dos figurinos criados pelo próprio diretor, evocam obras de Renée Magrite, como O filho do homem, Os amantes Golconda.

À luz da composição entre a fantasia e a realidade, a escolha do artista belga é interessante. A ideia de um surrealismo realista já foi usada para defini-lo, mas independentemente de terminologias, obras como as evocadas no espetáculo utilizam elementos prosaicos – o chapéu, a maçã, o lenço e assim por diante – retratados de maneira naturalista, detalhista quase, mas em contextos inimagináveis a princípio, sugerindo justaposições misteriosas e fascinantes. Em outras palavras, uma maneira própria e bastante visível de unir o consciente e o inconsciente, a racionalidade do cotidiano ao sonho e à fantasia.

Mas o primeiro ato da ópera enfrentou algumas dificuldades no que diz respeito à movimentação cênica. Balé, coro, uma quantidade enorme de solistas, todos pareceram apertados no palco do São Pedro, indistintos em sua individualidade – o que vai contra não apenas a caracterização musical de Janácek como a própria estética de Magritte, além de tornar confusa a narrativa.

A partir do segundo ato, porém, a ocupação do espaço cênico organiza-se e o espetáculo ganha fluência. É quando se torna possível ter acesso de fato à caracterização criada pelos cantores, um elenco eficiente e homogêneo: a soprano Carla Caramujo, como a Raposa; Denise de Freitas, o Raposo; Vinicius Atique, o guarda; Giovanni Tristacci, o professor; Saulo Javan, o padre; Gustavo Lassen, Harasta. É a partir desse momento que fica mais fácil também compreender a riqueza da leitura do maestro Ira Levin, o modo como reconhece e trabalha os diferentes climas e atmosferas que tornam a partitura de Janácek tão fascinante. Pois eles são essenciais para um compositor que se propõe a estabelecer relações muito viscerais entre a música e as emoções, a psicologia dos personagens ou o ambiente em que vivem. 

O dueto entre a Raposa de Caramujo e o Raposo de Denise de Freitas, tão delicado em seu lirismo peculiar, que as cantoras trabalham de modo cativante; as cenas na taverna, elas próprias diferentes entre si dado o momento da narrativa; a cena final, em que Vinicius Atique consegue balancear gravidade e leveza na constatação final sobre os ciclos de vida e morte – são algumas das passagens mais marcantes de um espetáculo que, no final das contas, entre fantasia e realidade, nos relembra que o limite entre elas é, na melhor das hipóteses, tênue.

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Carla Caramujo, Denise de Freitas e Vinicius Atique [Divulgação/Heloisa Bortz]
Carla Caramujo, Denise de Freitas e Vinicius Atique [Divulgação/Heloisa Bortz]

 

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