O concerto foi dedicado ao violoncelista Matias de Oliveira Pinto, que faleceu em um acidente no começo de fevereiro
“Sempre que há nascimento ou morte / O véu sagrado entre os mundos / Se torna tênue e se abre levemente / Apenas o suficiente para o Amor deslizar”.
Estas são as primeiras palavras de O véu sagrado (The Sacred Veil), obra de Eric Whitacre que foi brilhantemente interpretada pelo Coral Paulistano ontem (dia 13), sob regência de Maíra Ferreira. A récita abriu a temporada do grupo e foi dedicada ao violoncelista Matias de Oliveira Pinto, que morreu no início de fevereiro em um acidente automobilístico.
A interpretação foi brilhante não só pelo preparo, mas também pela elegância com que o Coral encarou a mudança repentina do local da apresentação, provocada pela queda de energia na Praça das Artes. O Salão Nobre do Theatro Municipal de São Paulo, alternativa escolhida, ficou lotado para o concerto. (Hoje a apresentação ocorre no local pretendido originalmente, a Sala do Conservatório. Lá o público poderá vivenciar a concepção completa do concerto, que inclui uma cenografia que não pôde ter sido montada ontem.)
A escolha de uma obra de conteúdo trágico e denso como é O véu sagrado vai na contramão do que geralmente se espera de um início de temporada. A ousadia condiz com a postura do Coral, que tem seguido sua tradição: a de trazer propostas novas e instigantes para o público.
Há várias vozes na obra de Whitacre, mas três são mais evidentes: a de Charles Anthony Silvestri, que perdeu sua esposa para o câncer em 2005; a de Julie Silvestri, que, morta prematuramente, aos 36 anos, deixou textos sobre sua percepção da vida e do medo da morte, do amor aos filhos e ao marido; e a voz de Whitacre, que, além de ter escrito partes do texto, trouxe para a música os doze poemas que compõem a peça.
O ponto de maior tensão acontece no movimento que divide a obra em dois: Julie descobre que está doente. O momento é descrito a partir da voz dos médicos, que informam o diagnóstico usando termos técnicos (“Massa cística retroperitoneal de quinze centímetros” em diante).
Mas o discurso musical, em vez de remeter ao lugar (que seria o consultório onde a notícia foi dada com toda a objetividade científica), nos leva para dentro dos afetos de Julie ao ouvir a notícia. As palavras frias e difíceis sofrem uma transição que representa o estado de espírito de Julie: as frases, periódicas e consonantes, vão se transformando paulatinamente em textos e sons fragmentados, cada vez mais fortes e sobrepostos. Ao final do movimento, Julie conclui: “Estou com medo”.
A interpretação do Coral Paulistano encheu de energia esses pontos mais emocionantes da obra; a conexão do grupo com a regente Maíra Ferreira foi um espetáculo à parte. E a leveza da cor branca, escolhida como figurino, promoveu um contraste sensível com a dramaticidade da música e do texto. É verdade que, hora ou outra, a música tenha ganhado contornos dos ruídos vindos da Praça Ramos de Azevedo. Mas em nada as intervenções atrapalharam a fruição do público. Da metade para o final da obra, boa parte se encontrava às lágrimas.
As transições entre os movimentos de O véu sagrado são marcadas por breves interlúdios instrumentais de piano e violoncelo, que foram interpretados por Rosana Civile e Rafael Cesario. Civile conseguiu tirar o máximo possível do piano de ¼ de cauda disponibilizado devido a mudança de local. O timbre do instrumento deixou a desejar, mas a pianista soube mesclar-se bem no acompanhamento do coro e também nos diálogos com o violoncelo.
Após o concerto a chuva continuava caindo em São Paulo. Os recém implementados alertas severos já haviam iluminado as telas novamente. A energia acabou, a defesa civil avisou, a manutenção da luz na cidade está péssima, os músicos tiveram que deslocar-se.
A isso se sobrepuseram reflexões sobre a contradição entre vida e morte, pensamentos envoltos pela névoa da música recém finalizada. Vida e morte: dois atos inevitáveis, que nos trazem e nos levam embora do mundo à revelia de quem amamos, à nossa revelia. Ou como diz Eduardo Marciano, personagem de Fernando Sabino, em O encontro marcado: “Nascemos para morrer – nada pior do que não ter nascido”.
Entre vida e morte: e o tempo presente envolto por esse assombroso véu, cujo rasgo discreto faz “O Amor deslizar / Silencioso, para dentro ou para fora / Deste nosso mundo frágil e passageiro”.
[O programa do Coral Paulistano será reapresentado hoje, sexta-feira, às 20h, na Sala do Conservatório. Clique aqui para mais detalhes no Roteiro Musical.)
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