Gravação de Emmanuele Baldini e Lucas Thomazinho dedicada à obra de Francisco Mignone é um álbum raro, que enriquece o modo como devemos avaliar este grande compositor brasileiro
O recém-lançado álbum do violinista Emmanuele Baldini e do pianista Lucas Thomazinho com a integral das sonatas para violino e piano de Francisco Mignone obedece rigorosamente aos critérios que fizeram do projeto Música do Brasil um divisor de águas não só na afirmação da nossa música de concerto, mas como ponta de lança fundamental para mostrar ao planeta a qualidade do que se produziu e se produz de música de qualidade.
Mais do que isso, amplia um projeto inicialmente concebido para viabilizar a gravação de uma centena de CDs da música orquestral e concertante. A prática da música camerística é, sabemos, o melhor índice da qualidade da música que se pratica num país. Neste sentido, como outros lançamentos anteriores, este é particularmente bem-vindo. Sobretudo porque joga novas luzes mesmo sobre um compositor que consideramos já bem conhecido.
Dos 85 minutos de duração do álbum, 48 são de música em primeira gravação mundial. Os 37 minutos restantes são ocupados por duas obras de juventude, do período em que Mignone estudava no Conservatório Dramático Musical, ao lado de Mário de Andrade. Da Sonata em sol maior, de 1916, existe apenas um movimento, “Allegro deciso”; a Sonata em lá maior data de 1919. Ambas são bem construídas, sob o guarda-chuva da música francesa então dominante na vida musical brasileira.
Delas existem outros registros. Por isso – e acertadamente –, Baldini e Thomazinho optaram por começar o álbum com as sonatas que permaneciam até hoje inéditas em gravação. Elas foram compostas na década de 1960, período em que Mignone namorou com a música serial/atonal. E deu-se muito bem. Ao contrário de 99% dos epígonos da música serial, que eram mais realistas que o rei – respeitavam a técnica como uma bíblia –, Mignone prefere acenar, brincar com as fórmulas. Nunca segue as regras. Ora a música soa compacta, como na concisa Sonata nº 2, em movimento único, onde se sucedem quatro movimentos, inclusive um “recitativo” logo depois de um “Intermezzo”, cujo título completo é “calmo e con ponderazione”. Ou seja, passeia livremente, ao sabor de uma privilegiada sensibilidade. A ótima execução realça estas qualidades.
Na década seguinte Mignone retornou ao nacionalismo – o mesmo nacionalismo que abraçara pela primeira vez de 1929 em diante, depois de dez anos de estudo em Milão. Àquela altura, a sua era uma formação heterodoxa num momento histórico, político e cultural totalmente afrancesado no Brasil e os modelos atendiam por Fauré e Debussy. Chegou e logo sentiu o impacto da vaga nacionalista comandada por Mário de Andrade – um ano depois da publicação do Ensaio sobre a música brasileira.
Pressionado por Mário, mergulhou nas fontes africanas para dar cor nacional a sua música – e receber as bênçãos de Mário. Ele me contou isso rindo e dizendo: “eu não era besta de bater de frente com ele”, numa entrevista que fiz com o casal Mignone nos anos 1980 – ele e sua Maria Josephina, notável pianista que nos deixou há pouco, aos 101 anos, e em plena atividade. Uma de suas última gravações foi resgatar a música popular sertaneja do adolescente do Brás, que se escondeu no pseudônimo Chico Bororó. Mas esta é outra história.
No finalzinho da vida, costumava contar aos jornalistas que o entrevistavam – eu entre eles – estorinhas como esta: quando era jovem e lhe perguntavam qual o compositor mais importante para ele, a resposta era sempre Bach; depois, na maturidade, passara a responder Beethoven. Mas na velhice, ria, liberto de qualquer canga estética, dizia que era Giacomo Puccini mesmo.
A parceira de Revista CONCERTO Camila Fresca reproduz, no ótimo texto do encarte, parte de uma famosa carta de Mignone a Vasco Mariz, de 1980: “Na idade provecta a que cheguei, posso afirmar que sou senhor e dono, de direito e de fato, de todos os processos de composição e decomposição que se fazem e usam hoje e amanhã […] Tudo se pode realizar em arte, desde que a obra traga uma mensagem de beleza e deixe no ouvinte a vontade de querer ouvir mais vezes as obras. Não acontece assim também nas outras artes?”.
Pois é esta “mensagem de beleza” que Baldini e Thomazinho nos transmitem com virtuosismo e enorme sensibilidade.
Um álbum raro, que enriquece o modo como devemos avaliar este grande compositor brasileiro.
[O disco está disponível na Loja Clássicos; clique aqui para ver mais detalhes.]
![Lucas Thomazinho e Emmanuele Baldini [Divulgação/@piano.em.cena]](/sites/default/files/inline-images/w-eb_lt.jpg)
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