“Guarani” ganha leitura poética em concepção de Ailton Krenak e Cibele Forjaz

por João Luiz Sampaio 15/05/2023

Há muito não se via uma produção de ópera no Brasil despertar tanta atenção quanto a de O guarani que subiu ao palco do Theatro Municipal de São Paulo na sexta-feira, 12. Polêmica prévia, causada pela premissa anunciada: uma montagem que colocasse no centro do debate o retrato feito por José de Alencar e Carlos Gomes do indígena. “Peri é uma caricatura de índio ridícula, a que estamos sujeitos há 150 anos”, disse o líder indígena, filósofo e escritor Ailton Krenak, responsável pela concepção da produção. E essa caricatura, ele afirma, é parte da construção de uma imagem que tem consequências na maneira como a sociedade brasileira ainda trata o indígena e sua cultura. 

Nas redes sociais e na imprensa, cantores, diretores de casas de ópera, encenadores se colocaram contra a produção. Questionaram a legitimidade (sim, o termo usado foi esse, você não entendeu errado) de Krenak, por não pertencer ao mundo lírico, de dar pitaco no assunto. Defenderam Carlos Gomes, seu status de grande herói e mito da ópera nacional (herói e mito, isso mesmo). Falaram, claro, nas intenções originais do compositor (sempre elas). E defenderam, com toda força indômita possível, que O guarani é uma ópera do século XIX e tem que ser julgada de acordo com os valores de então (estamos julgando obras?). Em resumo, a própria existência desse Guarani, antes mesmo que ele subisse ao palco, parecia uma ofensa ao gênero, seus mitos e seus profissionais. 

Quanta bobagem. 

A história da ópera nos últimos cem anos tem sido em grande parte a da reinterpretação do repertório – feita, naturalmente, a partir do diálogo entre o tempo no qual surgiu a obra e aquele em que ela está sendo relida. E não me parece que compreender e aceitar a ligação da ópera com os valores de sua época signifique a impossibilidade de oferecer para ela uma releitura que questione suas ideias. 

Nesse sentido, encenar O guarani tendo como foco a questão indígena, em um momento no qual ela se tornou mais uma vez central no debate público (e convidar para isso pensadores e artistas indígenas) está longe de ser uma aberração conceitual – é quase uma obviedade.

É justamente por ser símbolo tão bem-acabado de seu tempo e de sua busca por uma arte/identidade nacional que a ópera de Carlos Gomes se tornou central na cultura brasileira. E, não tem jeito, obras dessa importância serão sempre relidas. Precisam ser. 

O que, aliás, acontece desde o começo do século XX. Oswald de Andrade, cento e um anos antes de Krenak, já falava no Peri caricato, “de maiô cor-de-cuia e vistoso espanador na cabeça a berrar forças indômitas em cenários terríveis”. Como anota Jorge Coli em seu Música Final, “como a modernidade foi acompanhada por uma clara vontade de alcançar as fontes nacionais verdadeiras, ‘autênticas’, os índios de Carlos Gomes, cantando em italiano, pareciam evidentemente uma insuportável caricatura”.

Oswald de Andrade também era fruto de sua época. Mas ao longo das duas últimas décadas, montagens também abordaram o buraco entre o século XIX e o século XXI. Em Belém do Pará, em 2007, William Pereira fez dos personagens de O guarani estátuas de um museu. Três anos depois, no Theatro São Pedro, João Malatian escolheu como eixo de sua leitura a dominação cultural dos portugueses por meio da religião. Walter Neiva, por sua vez, para o Palácio das Artes, em 2016, ambientou a história em um enorme livro/cenário que envelhece à medida em que a ópera se desenrola. 

A novidade do conceito de Krenak é levar ao palco o retrato feito por Carlos Gomes da cultura guarani pelas mãos de seus representantes. Isso leva necessariamente a uma leitura crítica da obra. Não é uma tarefa fácil. Mas o resultado mostrou-se surpreendentemente poético, sem que a multiplicidade de olhares sacrificasse a narrativa, apesar de alguns recursos que pareceram excessivos ou repetitivos. Pelo contrário.

Duplos

A concepção visual do espetáculo deve muito ao artista guarani Denison Baniwa. É de seus desenhos que nascem os cenários ou em alguns casos a sugestão de ambientação, com soluções funcionais e muito bonitas, como na revoada de pássaros que emerge da floresta no terceiro ato, uma impressionante floresta feita de pessoas e cores. Para além do efeito visual, foi uma maneira rica de colocar em cena a noção – extraída do Padre Vieira e relida pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro – de que a cultura indígena está em constante transformação, movimento, em especial por conta de sua relação com a natureza, vista por meio das representações gráficas criadas por Baniwa.

Em oposição à noção de algo que é dinâmico, opta-se na movimentação dos cantores, em especial no bando do espanhol Gonzáles, mas também entre os portugueses, por um gesto estilizado, seco, duro. O deles é um mundo quase sem cores – melhor seria dizer que as cores que dele se sobressaem são apenas as do minério, símbolo da exploração da terra indígena, como ressalta a enorme broca posicionada no centro do palco.

Cibele Forjaz criou duplos para Peri e Ceci, interpretados por dois atores guaranis, David Vera Popygua Ju e Zahy Tentehar Guajajara. É escolha importante, porque mergulha no âmago da concepção de Krenak. Mas carrega um risco inerente: o de criar duas narrativas justapostas, que não se comuniquem entre si e acabem, no final das contas, impedindo o diálogo de fato no palco entre o original e a releitura, que conviveriam sem se tocar – o que iria contra a própria defesa do olhar para o outro que a produção defende. 

Mas a diretora consegue integrar os dois mundos de maneira muito poética. Peri cantor (na récita de sábado, o tenor Enrique Bravo) e Peri ator estão juntos, mas também possuem autonomia para observar o cenário à sua volta. O canto é heroico, o olhar guarani é de estranhamento e curiosidade. Funciona bem a interação entre Popygua Ju e a Peri cantora (a soprano Debora Faustino). Assim como a ideia de dar também a Ceci um duplo guarani, reforçando a dimensão de uma personagem que, ao se apaixonar por Peri, também se afasta da convenção.

A interação é bem construída também na participação da Orquestra e Coro Guarani do Jaraguá Kyre’y Kuery. Os músicos e cantores aparecem em cena no final do primeiro ato, interpretando a música de sua cultura – e se transformam em seguida, no início do segundo ato, nos membros da tribo guarani em que Peri canta sua ária, Vanto io pur. A escolha dá a Peri uma filiação, mas é mais do que isso: pelo gestual, Popygua Ju acolhe e convida o Peri de Gomes a participar do mundo guarani real. É um dos momentos mais sutis, fortes e tocantes do espetáculo. 

E há a cena da conversão, aquela que mais se costuma problematizar em O guarani. Ela é de fato importante. José de Alencar propunha que a identidade nacional brasileira nascia do casamento entre o português e o indígena. Mas, no romance, e assim também o é na ópera, uma das condições para que isso aconteça é a renúncia por parte do indígena de suas crenças e aceitação do deus português.

Como resolver essa questão? São utilizados dois elementos. O primeiro é uma frase extraída dos Sermões do Padre Vieira, projetada brevemente em uma tela no alto do palco, à direita: “outros gentios são incrédulos até crer; os brasis, ainda depois de crer, são incrédulos”. A conversão de Peri seria, se não uma farsa, um ardil para que pudesse ficar ao lado de Ceci. E aí entra o segundo elemento: uma enorme imagem de Nossa Senhora que Peri descobre, revelando Ceci. Aqui, e isso talvez seja o mais importante, ópera e guaranis mais uma vez encontram terreno comum.

Urgência dramática

Musicalmente, este foi um Guarani muito bem construído. Da urgência da abertura às passagens de maior lirismo, Roberto Minczuk e a Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo mantiveram sem quedas a tensão dramática do espetáculo. Foi particularmente interessante a forma como a interpretação tornou evidente o modo como Carlos Gomes já trabalha aqui os temas musicais – ainda que esse uso só vá se refinar de fato a partir da Fosca, sua ópera seguinte. Também o Coro Lírico Municipal saiu-se bem, coeso, mais intenso do que forte, em especial no terceiro ato. 

Enrique Bravo, como Peri, trabalha a todo instante a chave do heroísmo, dialogando com a proposta cênica, mas, em alguns momentos, perdendo a chance de mostrar a maior variedade de cores que a voz parece ter. Hesitante no dueto, cresceu já no segundo ato e teve grande momento no terceiro, no dueto com a Ceci de Debora Faustino, Perchè di meste lagrime.

Ela é dona de uma voz generosa, bem projetada, e está atenta a matizes que lhe permitam explorar diferentes facetas da personagem, que cresce em sua interpretação. Ela demarca bem a transformação que Gomes sugere em Ceci por meio da escrita vocal, que se adensa do início da ópera até o terceiro ato. E mostra desenvoltura em cena, em especial nas interações com Popygua Ju e Zahy Tentehar Guajajara, cuja presença no palco deve ser celebrada não apenas pela evocação da cultura guarani, mas também pela qualidade da atuação. 

Com sua voz e presença cênica, o barítono Davi Marcondes conseguiu dar a Gonzáles espaço na galeria dos vilões do repertório do século XIX, menos caricato, mais intenso e cruel. Andrey Mira foi um Don Antônio quase lírico. E Licio Bruno, um cacique imponente, aqui transformado em um antropólogo a observar os aimorés. 

Este é um dos momentos em que o espetáculo abre mão da narrativa e a substitui por uma reflexão sobre o papel do antropólogo – e começa a perder um pouco do tônus. Da mesma forma, as projeções e textos que acompanham a Balada de Ceci no segundo ato brigam pela atenção do público. A ideia talvez tenha sido relativizar o romantismo da cena, ou sugerir que ele também produziu um retrato enviesado da cultura indígena. Mas o resultado não permite que nem a ária, nem as projeções encontrem espaço em meio ao excesso de informações. É, de resto, um recurso quase pedagógico, o que por si só sacrifica força dramática, além de brigar com o espírito geral do próprio espetáculo. 

São ressalvas que, no entanto, não diminuem a potência do espetáculo e sua capacidade de repensar O guarani sem abrir mão da força da obra. 

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Cena de 'O guarani', no Theatro Municipal de São Paulo [Divulgação]
Cena de 'O guarani', no Theatro Municipal de São Paulo [Divulgação]

 

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