Como Cavalleria Rusticana faz mal a I Pagliacci...
As óperas de Mascagni e Leoncavallo costumam ser apresentadas lado a lado desde 1893, quando o Metropolitan Opera House de Nova York as colocou juntas em um mesmo espetáculo. Há razões para isso. São obras curtas, representantes de um mesmo momento, o verismo, que abre no final do século XIX um novo caminho para a ópera italiana. Seus personagens são banais, cotidianos, e a violência das emoções que carregam aproxima o gênero da vida real, abandonando os temas históricos que até então mantinham predominância nos palcos.
Mas as semelhanças param por aí. E há um abismo entre as realizações dos dois compositores.
Sem provocações. A música da Cavalleria rusticana tem força suficiente para evocar a paisagem siciliana; momentos especiais, como o Hino de Páscoa; e o compositor tinha razão em considerar que a frase “Hanno amazzato compare Turiddu” seria muitos mais forte dramaticamente do que uma longa cena final sobre o duelo entre Turiddu e Alfio, como haviam sugerido seus libretistas.
I Pagliacci tem a mesma força dramática, o mesmo ritmo de ação, mas somados a uma caracterização musical de personagens e situações muito mais rica. Basta ouvir o Prólogo. O artista é um homem e deve se inspirar na verdade. É quase um manifesto do verismo. Mas a música que o acompanha tem tantas cores, tantas facetas diferentes... Não é apenas na cena do teatro dentro do teatro que a ópera trafega entre o real e a ficção; em toda a partitura, o uso que Leoncavallo faz dos temas cria um jogo de relações interessante, que dá camadas à história sem abrir mão de sua crueza verista.
Em outras palavras, é como escreve René Leibowitz, para quem “na ópera de Leoncavallo, o Verismo transforma-se no próprio assunto do drama, e essa identificação absoluta do conteúdo e da forma, ou seja, a identificação entre o senso dramático e os meios empregados para realizá-lo, cria uma ópera poderosa, de rara intensidade expressiva”.
Todas essas sutilezas ficam particularmente claras na regência do maestro Abel Rocha na montagem apresentada no último final de semana no Teatro Sérgio Cardoso. À frente da Orquestra Sinfônica de Santo André, reduzida para caber no fosso do teatro, ele não apenas constrói com fluência dramática o espetáculo – coisa de quem entende de ópera. A cena da apresentação da trupe, no final narrativa, é exemplo do cuidado do maestro em revelar as dimensões da partitura, trabalhando com inteligência as recorrências temáticas.
Interessante também a Nedda da soprano Thayana Roverso, de uma delicada urgência na ária Stridono lassù e de corte mais interiorizado no dueto com Silvio, o ótimo barítono Vinicius Atique (uma pequena chatice: ainda que seja praxe encurtar o dueto, a música é tão bonita...).
Lucas Melo, como Canio, foi uma surpresa, com o timbre abaritonado dando colorido marcante ao personagem. Ter o tenor Anibal Mancini como Beppe é um luxo – e sua ária foi um dos momentos musicais mais sofisticados da récita da tarde de domingo. Como Tonio, Rodolfo Giuliani foi crescendo ao longo do espetáculo, saindo-se muito bem na cena da comédia.
Este Pagliacci tem um sentido especial. Após as apresentações em São Paulo, vai viajar por quinze cidades do do estado (produzida pela Cia. Ópera São Paulo, ela faz parte do projeto A caminho do interior, do Istituto Italiano di Cultura). É uma iniciativa importante. E exige do diretor de cena a construção de uma encenação funcional, que possa viajar e ser montada e desmontada com relativa facilidade.
O trabalho de André Di Peroli tem essas qualidades, que ele atinge com muito bom gosto. Talvez falte interação maior entre os personagens, que a todo instante se colocam na boca de cena, cantando para a plateia, o que vai se tornando cansativo. A violência da paixão é um fenômeno interior, sim. Mas, como mostra o verismo, explode no contato com o mundo e o outro.
![Thayanna Roverso e Rodolfo Giuliani (ao fundo) em 'I Pagliacci' [Divulgação/Rodrigo Atique]](/sites/default/files/inline-images/_DSC8302.jpg)
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