Mezzo soprano foi acompanhada da Orquestra Acadêmica Mozarteum Brasileiro sob regência de Constantine Orbelian
Uma maldição de cancelamentos assombra a temporada paulistana de concertos de 2023. Primeiro foi o violinista francês Renaud Capuçon, que pulou fora das apresentações que faria com a Camerata Salzburg, mês passado, na série da Sociedade de Cultura Artística. E, agora, o Mozarteum Brasileiro anunciou o cancelamento do regresso ao Brasil da superlativa mezzo letã Elina Garanca, que conquistou todos os corações e derrubou a totalidade dos queixos ao se apresentar por aqui em 2019.
Inegável ducha de água fria. Não consegui me animar para assistir à orquestra da cidade natal de Mozart. E teria também ficado em casa na noite de terça-feira, dia 27, não fossem os veementes elogios à substituta de Garanca, a mezzo norte-americana Isabel Leonard, feitos pelos colegas Márvio dos Anjos (clique aqui para ler) e João Luiz Sampaio (clique aqui para ler), que acompanharam sua performance, em março, no aniversário de Curitiba – onde, pelo que se comenta nos bastidores, ela também era a segunda opção (afirma-se que o plano A era a soprano russa Anna Netrebko, que teria deixado os organizadores do concerto paranaense chocados com sua demanda astronômica de cachê).
Pois bem: Márvio e João estavam cobertos de razão. Como este último escreveu em sua crítica no site CONCERTO, Leonard tem uma “voz única” (uniforme, bem apoiada e com projeção em todos os registros), destacando “o timbre escuro, quente; o cuidado e a clareza com o texto; a presença de palco”.
Na primeira metade do concerto, o único item verdadeiramente virtuosístico foi Una voce poco fa, do Barbeiro de Sevilha, de Rossini – interpretada com enorme desenvoltura nas coloraturas e na medida certa de temperamento, sem maneirismos histriônicos. De resto, ela esteve confortabilíssima tanto nas duas árias de Cherubino da outra ópera baseada em Beaumarchais do programa, As bodas de Fígaro, de Mozart (Non so più e Voi che sapete), quanto nas Canções populares espanholas (lamentavelmente amputadas – as sete originais ficaram reduzidas a cinco), de Falla.
Depois do intervalo, uma escolha de repertório peculiar: após o norte-americano de origem russo-armênia Constantine Orbelian (velho conhecido do público brasileiro) e os jovens músicos da Orquestra Acadêmica do Mozarteum Brasileiro esbaldarem-se no kitsch orientalista da Bacanal da ópera Sansão e Dalila, de Saint-Saëns, Leonard subiu ao palco para entoar a Air des Lettres, do Werther, de Massenet. É preciso ser uma artista de primeira linha para, em instantes, dissolver o clima de telenovela O clone e arremessar a plateia na atormentada atmosfera romântica de Goethe: a intensidade de Leonard tirou a apresentação da zona de conforto em que se situara na primeira metade, e a temperatura da Sala São Paulo subiu.
Vulgaridade parece ser uma palavra banida pela mezzo de seu vocabulário artístico e, quem tivesse qualquer dúvida a respeito, pôde dirimi-la nos dois itens da Carmen, de Bizet, a Habanera e a Seguidilla. Leonard impregnou-as da devida sensualidade sem, contudo, recair nos exageros gestuais aos quais mais de uma de suas colegas não consegue resistir.
A apresentação terminou com Granada, de Agustín Lara – momento “é brega, mas eu gosto” –, deixando uma questão no ar: quando um item de bis é incorporado ao programa “oficial”, o que poderá vir em seguida?
Pois Leonard mostrou-se na Sala São Paulo com uma taça com líquido amarelado na mão e, após exprimir-se em uma criativa mescla de português, espanhol e inglês, sapecou uma divertidíssima Ah! quel diner, a ária de embriaguez da opereta La Périchole, de Offenbach. Animadíssimo, Orbelian não teve pejo em matar o conteúdo da taça, enquanto a mezzo despachava o público para casa com o lirismo de Somewhere, de West Side Story, de Bernstein. Que delícia de plano B!
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