Jocy de Oliveira e Stravinsky: noite de vanguarda no Theatro Municipal de São Paulo

O vislumbre de futuro que uma obra de vanguarda proporciona à escuta não impede a reflexão sobre o passado de uma grande artista como a compositora Jocy de Oliveira. Seu pioneirismo no cenário musical brasileiro e sua tenaz contribuição para a divulgação da música contemporânea é fonte de inspiração. Dispensa imaginar a dificuldade de ter sido levada a sério (brasileira e mulher) por seus pares e mestres – tarefa difícil e conquistada. Por isso, nada mais justo do que ovacioná-la ao final de sua estreia mundial, Cantos Noturnos III, executada no Theatro Municipal de São Paulo no último final de semana.

A obra coloca em paralelo duas cronologias: a melodia antiga Dies Irae gradativamente surge para então transformar-se em um riff de rock. O sentido representativo da justaposição se faz latente. De oratório solene, permeado de responsórios, passamos ao drama: soprano (indivíduo?) se desata das vestes pretas e, em trajes modernos e muito brilhantes, invade a plateia, em desvario cênico e vocal, acompanhada pela banda. De volta ao palco, tenta agitar o coro (coletivo?), sem sucesso. Esgotada, desmaia. É então julgada pelo coro e pela mezzo soprano, que agora, juntos e em fortíssimo, bradam a melodia de maldição de Dies Irae (“Quanto tremor está por vir/quando vier o juiz/julgar tudo com rigor”). De fato, o ouvinte não espera tal mudança de humor. Neste ínterim, a melodia passa de lamento (como diz o subtítulo da obra) a pura violência. Impossível não pensar em Inquisição e em bruxas. 

Musicalmente, brilhante o emprego das sonoridades em ambos coros masculino e feminino durante a primeira parte da obra, com destaque para os crescendi no coro feminino. Os solos eram alternados entre a mezzo soprano Juliana Taino e a soprano Gabriela Geluda, cujo domínio técnico na emissão de ruídos e notas agudas em pianíssimo no início da obra não passou despercebido. Os cantores foram acompanhados por um ensemble que reunia piano (interpretado por Karin Fernandes), violino, violoncelo, clarone, oboé, percussão, guitarra e baixo elétrico (tocados por Aloysio Neves e Dodo Ferreira).

Técnicas como o uso de arco no baixo e o ataque nas cordas do piano somaram-se à construção progressiva da melodia de Dies Irae, ao mesmo tempo mesclando-se à textura das vozes e transformando o discurso musical. Essa primeira parte construiu com sucesso o ambiente sonoro de fato noturno, lúgubre, deste Canto, aqui muito bem resolvido e equilibrado pela regente Maíra Ferreira. Uma pena não saber os nomes dos outros instrumentistas (todos integrantes da OSM), uma vez que neste ensemble todos tiveram papéis importantes em vários momentos da obra.

Por sua densidade, duração e contrastes, Cantos Noturnos III se diferenciou bastante de Cantos Noturnos I, que foi executada primeiro. Nesta obra, ambos os coros permaneceram de olhos fechados – uma resolução de performance sensível, bem pensada –, enquanto as mesmas solistas cantavam uma melodia sobre um poema de Apollon Maikov, acompanhadas pelo ensemble instrumental.

Na segunda parte do programa, Les Noces, de Igor Stravinsky. O balé-cantata (ou “cenas coreográficas russas”, de acordo com o compositor, como apontam as notas de programa), foi composto em 1914, portanto em sua fase russa, e carrega muitas semelhanças com a Sagração da primavera. Após mudanças na instrumentação, a obra foi estreada em 1923 em formação definitiva: quatro pianos, percussão, coro misto e quatro cantores. 

Obra de fôlego, a ouvidos desatentos aparenta constituir uma parte só, mas são quatro. Elas nos apresentam momentos de um casamento de camponeses russos: vemos o desenrolar dos preparativos da noiva, do noivo, o auxílio das damas de honra e dos amigos antes da grande festa. O texto e as melodias empregados por Stravinsky, retirados de canções folclóricas, passam por transformações que são marca de estilo do compositor: notas curtas, mudanças constantes de compasso que deslocam os apoios rítmicos, pontuações incisivas por parte da percussão e sonoridade também percussiva para os quatro pianos, aqui interpretados por Karin Fernandes, Renato Figueiredo, Rosana Civile e Cecília Moita. 

Gabriela Geluda e Juliana Taino voltaram ao palco para a obra, dessa vez acompanhadas pelo tenor Daniel Umbelino e o baixo Lício Bruno, que expressaram bem o texto, trazendo em primeiro plano o espírito alegre presente em várias partes da obra, explorando interjeições espirituosas com boa projeção. Em termos de equilíbrio, os pianos estiveram menos presentes durante o curso de Les Noces, talvez pela montagem do palco e pelo uso de meia tampa dos instrumentos. A depender da posição de escuta, algumas vezes os solistas foram sobrepostos pela percussão. Apesar disso, a energia da obra, muito difícil de ser mantida por sua constância, permaneceu viva entre todos os músicos e a regente Maíra Ferreira. Ao final, uma ocorrência comum em boas performances: os aparentes cinco minutos de música tinham na verdade somado quase 25.

O programa do último fim de semana no Theatro Municipal, portanto, teve energia intensa e propagação de muito calor. O frio que se estabeleceu em São Paulo ficou do lado de fora, nas escadas. O público pôde assistir às obras de dois grandes mestres da composição – Jocy de Oliveira e Igor Stravinsky, que aliás tiveram uma parceria importante e frutífera que vale o leitor pesquisar – numa noite dedicada à música que sobrepõe barreiras.

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Ensaio do concerto com obras de Jocy de Oliveira e Igor Stravinsky [Reprodução/Facebook]
Ensaio do concerto com obras de Jocy de Oliveira e Igor Stravinsky [Reprodução/Facebook]

 

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