Na entrevista que concedeu à edição de setembro da Revista CONCERTO, Clarice Assad afirmou que a equipe criativa da ópera Isolda/Tristão evitou, de forma deliberada e consciente, qualquer alusão à obra de Richard Wagner, Tristão e Isolda. Ainda assim, como afirma o texto de programa do espetáculo encenado no Theatro Municipal de São Paulo nas últimas duas semanas, é inevitável, ao abordar esses personagens, a lembrança da criação do compositor alemão. Mesmo que seja para evidenciar o que as duas óperas têm de diferente.
Em Wagner, há, entre Tristão e Isolda, este “e”, sobre o qual os personagens chegam a conversar durante o dueto do segundo ato. “Mas não se chama, o nosso amor, Tristão e... Isolda? Esta doce letra – ‘e’ – que nos une com a união do amor, se Tristão tivesse que morrer, não morreria ela também?”, pergunta Isolda, para em seguida completar: “Mas esta letrinha – “e”... Como poderia ser destruída senão com a própria vida de Isolda se Tristão morresse?”
O “e” precisa desaparecer para que, à luz da visão metafísica inspirada em Arthur Schopenhauer, o indivíduo desapareça e retorne a um estado essencial onde toda a vida se une, “sem nunca despertar, sem nada temer, sem ter nomes, vestidos pelo amor, entregues um ao outro, vivendo unicamente por amor”, como vão dizer Tristão e Isolda pouco depois, separados e, então, juntos.
No texto de programa, Júlio Mourão, Luísa Tarzia e Nata da Sociedade explicam a substituição do “e” pelo “/”. Ela “demarca que esta versão fala sobre uma outra forma de estar juntos, uma separação que os coloca lado a lado, como indivíduos e não metades, em uma dinâmica marcada por uma ligação mais profunda que a simples junção”. Da mesma forma, há um sentido na inversão na ordem dos nomes: “Isolda vem primeiro, sua ação e sua história à frente”.
E de que ação e história estamos falando? Do mundo medieval, a libretista Marcia Zanelatto se apropria da terra e do mar, da disputa de territórios e da definição de fronteiras. “A travessia marítima de Tristão e Isolda até a Cornualha, para que a princesa da Irlanda se case com o rei Marcos, é, aqui, a travessia de resgate de Isolda e das pessoas no campo de refugiados que buscam a liberdade.” Estamos, portanto, em um tempo que é indefinido e, por isso mesmo, é também o nosso. Basta lembrarmos da imagem que, anos atrás, estampou as páginas de jornais de todo o mundo, a do corpo sem vida de uma criança levada pela maré até a praia após o naufrágio de uma embarcação de refugiados.
É um ponto de partida estimulante, assim como a presença da reflexão sobre a ancestralidade feminina – é da mãe que Isolda herda a luta contra o opressor, um princípio que se torna a poção da história original a unir os protagonistas em torno de um ideal que não é o desaparecimento do indivíduo mas, sim, a luta por cada vida em um mundo que não se incomoda em se desfazer do outro.
Por mais inevitável que seja a evocação de Wagner, pouco há de comum entre Tristão e Isolda e Isolda/Tristão. A ópera de Clarice Assad e Marcia Zanelatto é uma obra assumidamente política. Nesse sentido, talvez faça mais sentido pensar no Wagner do Anel do Nibelungo como referência para diálogo. Pois é na tetralogia que o compositor insere um arcabouço de reflexões que remetem à Europa do século XIX. O ambiente mitológico não disfarça, ou ao menos não deveria, o fato de que deuses, gigantes, nibelungos e ninfas estão, na verdade, falando da plutocracia, de uma sociedade baseada na desigualdade.
A queda de Wotan está ligada à noção de Deus como uma projeção da alienação do homem que Wagner leu em Ludwig Feuerbach; Siegfried é o símbolo do homem que se entende como um ente absoluto, aquele que, como Wagner vai encontrar em P.-Joseph Proudhon e Mikhail Bakunin, será livre e independente da figura divina e da hierarquia e poder que representa, e por isso mesmo capaz de criar um mundo de comunhão no qual não haverá espaço para a centralização do poder, para a corrupção, substituídas por uma vida sem hieraquias e formas de dominação de classes, ou seja, livre do sistema capitalista.
Mesmo quando, ao longo das quase três décadas em que escreve a obra, Wagner muda de ideia e faz o mundo se consumir em fogo enquanto Brünnhilde devolve o anel às águas do Reno, o pessimismo que se impõe segue em diálogo com o tempo do compositor. O mundo do Anel é destruído assim como foram destruídas as utopias das revoluções dos anos 1840, face à realpolitik que transforma apenas na medida em que a mudança permita a manutenção da velha ordem.
Mas Wotan não é apenas uma ideia, a da corrupção inerente ao poder que une estado e Igreja; a paixão entre Siegmund e Sieglinde não se limita à evocação da comunhão entre iguais; Alberich não é só símbolo da troca do amor pela acumulação de capital. É o mito, e não a história, escreve Wagner, que revela o mundo. O intelecto precisa ser “emocionalizado” para que o mundo possa ser projetado através do mito e da música. Cada personagem precisa ser mais do que a ideia que representa, ou ao menos representá-la por meio de histórias que integrem os níveis individual e social. Assim, ao mesmo tempo em que se busca a investigação da história individual, garante-se que ela não seja um fim em si mesmo mas, sim, um ponto de partida para algo que a ultrapassa e se torna universal, uma reflexão a respeito da própria condição humana.
Mas não precisamos nos limitar a Wagner e sua visão de mundo. Em Innocence, ópera de 2018, a compositora Kaija Saariaho narra a história de uma mãe que se vê trabalhando na festa de casamento do irmão do rapaz que, anos antes, foi responsável por matar sua filha ao entrar atirando na escola em que ela estudava. Não é difícil ver na obra uma crítica às políticas que armam a população. Mas ela se torna forte não pelo discurso, mas pela exploração dilacerante do sentimento dos personagens perante uma situação impossível. O desespero dos pais do assassino, em sua tentativa de deixar para trás o passado; a vida destruída daqueles que sobreviveram ao massacre; a angústia da mãe perante a festa de família, a mesma família da qual foi privada – é o drama individual, e o retrato claustrofóbico que dele se faz, que revela o efeito da tragédia e o mundo de opressão e violência que a torna possível.
É essa capacidade, a de ir além do discurso, que falta ao libreto de Isolda/Tristão. Se a mensagem da ópera é a da defesa da vida, de toda vida, de toda história individual que se esconde por trás da definição de "refugiados", o texto falha justamente no momento em que abre mão de se aprofundar nas histórias das personagens. E o efeito, então, é o contrário daquele que se pretende: os refugiados se tornam figuras sem história e, por isso mesmo, sem vida, sem face. E o mesmo vale para os protagonistas.
Isolda nos fala apenas de guerra, e é quase didática ao se referir aos “milhares sem terra, milhares sem lar”, que vivem em campos de refugiados em um “tempo parado no ar”. Ou então quando, no dueto com Tristão, diz a ele que “nossos países se tornaram maiores do que nós, as pessoas mortas, só o poder importa”. Ao que ele responde: “Essas pessoas precisam de uma saída, não podemos deixá-las aqui”. E de novo Isolda: “Se elas ficarem, são presas”.
A força com que a música introduz a personagem da mãe também se desfaz quando ouvimos dela apenas palavras de ordem. “Em seu peito, soldado, evoco que renasça aquilo que um dia mataram, a canção singela da tua vida. Evoco que renasça das cinzas da tua casa incendiada, das balas perdidas. Toda bala é perdida”, ela explica, pedindo que as mãos sirvam para a ternura e não para o disparo, arrematando em seguida: humanos somos.
A ancestralidade na relação entre filha e mãe à beira da morte também se limita à importância da luta. Quem são essas mulheres? Não importa tanto quanto aquilo que elas representam. E, no momento em que se reduz as personagens a conceitos e palavras de ordem, não há desenvolvimento, transformação, apenas um ciclo que não se interrompe, no qual a poesia (que, por outro caminho, pode ser tão crua, dura e poderosa quanto o panfleto) fica a serviço do discurso raso – e a palavra, pela repetição, perde seu sentido mais profundo.
As limitações do texto soam particularmente problemáticas frente à qualidade da música de Clarice Assad. A riqueza na exploração dos timbres, em especial no trabalho que desenvolve com a percussão; a reutilização do tema de Isolda ao longo da narrativa, em um trabalho rico de desenvolvimento dramático; a mistura de culturas tomadas como referência para a escrita; a habilidade tão rara de escrever para vozes, elementos tão bem recriados pela Orquestra Sinfônica Municipal regida por Alessandro Sangiorgi.
Se há alguma nuance no espetáculo, ela se deve à música – mas, em ópera, ela sozinha pode ir apenas até certo ponto. E não pôde contar também com uma concepção cênica, assinada por Guilherme Leme, que fosse além do óbvio e de uma direção de atores frouxa e desatenta à música – que deixou a soprano Melina Peixoto (Isolda), a mezzo soprano Luciana Bueno (Mãe), o tenor Daniel Umbelino (Tristão) e o baixo Sávio Sperandio (Marcos) à própria sorte na construção de personagens para os quais o texto, no final das contas, oferece pouquíssimos elementos – em que pese a excelente atuação vocal.
Isolda/Tristão foi apresentada em dobradinha com Ainadamar, do compositor argentino Osvaldo Golijov. A ópera gira em torno de três personagens centrais: Mariana Pineda, revolucionária do século XIX que se opôs ao absolutismo; Federico García Lorca, autor de uma peça sobre ela; e a atriz Margarita Xirgu, musa do poeta espanhol, grande intérprete de Mariana.
O libreto de David Henry Hwang está dividido em três quadros. No primeiro, Mariana, Xirgu prepare-se para interpretar Mariana em Montevidéu, para onde fugiu antes da Guerra Civil Espanhola. No segundo, Frederico, Xirgu e Lorca, no passado, discutem a situação na Espanha e ela tenta convencê-lo, em vão, a fugir com ela. E, no terceiro, Margarita, de volta ao tempo presente, Xirgu insiste em interpretar uma vez mais Mariana, até que a visão de Lorca a agradece por tudo o que fez por sua obra e a libera para a morte.
No primeiro quadro, Margarita e Lorca se encontram em um bar de Madri. Ele a a celebra pelos grandes papeis que já viveu. “Agora serei tua, porque farei Mariana Pineda. Porque esta grande mulher, que foi morta há cem anos, volta a viver em tua balada popular e sua mensagem traz o ar puro da liberdade que nosso povo deve respirar hoje”, ela diz. Lorca responde: “Ó Margarita, esta obra não é política!”. A atriz se surpreende. Por que então ele a escreveu? “Porque estou apaixonado por Mariana desde que fiz nove anos.”
Lorca relembra em seguida como, desde a infância, via por sua janela a estátua que representava Mariana, cinza, mas também repleta de luz e calor. E de amor. “Ah! Da minha janela, nas noites de insônia... da minha janela observava seu rosto, seus lábios ficavam vermelhos... seu alento me chegava doce. Ela se aproximava, beijava-me na boca e assim eu dormia.”
A provocação quase didática de Margarita recebe de Lorca uma resposta que pertence antes ao mundo da fantasia. Um mundo que não exclui o real, mas o ressignifica em todos os seus aspectos – entre eles, o político. Esse é justamente o aspecto interessante do libreto de Hwang. O subtexto político é claro. Mas, nas idas e vindas entre presente e passado, o texto cria um jogo de espelhos entre Lorca, Margarita e Mariana em que os personagens representam a si próprios mas também evocam os laços imateriais, etéreos, entre eles, explorados tão bem pela música, que os une, reforçando uma experiência coletiva por meio da investigação da individualidade.
Nesse sentido, é interessante o modo como a direção de atores de Ronaldo Zero (em um contexto cênico recuperado da montagem original da obra no Municipal, realizada por Caetano Vilela em 2015) trabalha esse espaço entre o concreto e o fantástico, com Mariana também presente no palco, interpretada pela bailarina Miranda Alfonso. Ao seu lado, a soprano Marisú Pavón, como Margarita, e a mezzo soprano Denise de Freitas, no papel de Lorca.
À vontade com uma escrita vocal que alterna entre o popular e o erudito, tendo o flamenco como referência constante, Pavón constrói uma caracterização de forte presença vocal e cênica. Há nela a urgência que, em Denise de Freitas (em ótima forma) desaparece – e isso é interessante, pois opõem-se assim duas reações sobre a violência, ambas intensas, mas feitas, na atriz, do delírio do palco, e, no dramaturgo, de poesia.
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