‘L’Italiana in Algeri’, de Rossini: grande elenco, direção e regência

por Jorge Coli 06/08/2019

No ano de 1810, inaugurou-se solenemente o monumento funerário de Vittorio Alfieri na basílica de Santa Croce, que é o Panteão florentino. Alfieri foi o grande poeta que anunciou a unidade italiana.

O grande Canova, maior escultor de seu tempo, foi o autor. Sobre um sarcófago de mármore, debruça-se uma chorosa mulher. Traz na cabeça uma coroa que figura as muralhas de uma cidade. Essa mulher é a Itália, chorando o gênio morto.

Foi a primeira vez na história moderna que a Itália aparecia nos traços de uma alegoria. Surgia unificada num corpo feminino, corpo desejado: a Itália futura era aquela mulher presente, a Italia Turrita, com a coroa que a caracterizaria nas lutas pela unidade da península e que seria oficialmente adotada pela república italiana.

Poucos anos depois, em 1813, Gioachino Rossini estreava sua L’italiana in Algeri, uma ópera-bufa muito engraçada, de sucesso triunfante. Apenas, essa italiana, mesmo num clima jocoso, consegue inserir uma ária que anima os homens a ter coragem em nome da Itália natal: Pensa alla pátria. Essa ária foi sentida como suficientemente subversiva para que, quando apresentada em Nápoles pela primeira vez, em 1815, a censura obrigasse Rossini a compor outra, neutra de um ponto de vista político.

L’italiana in Algeri constitui assim um marco no início das aspirações unitárias italianas. Ela traz uma genial mistura de energia, sensualidade e graça na qual a heroína, mais do que em qualquer outra ópera do compositor, toma a liderança coletiva dos italianos cativos e, empregando inteligência, põe em ação seus poderes sedutores sobre Mustafá, o Bei da Argélia. Assim, de modo natural e sem forçar nada, Isabella, a italiana, concentra em si a expressão de um feminismo contemporâneo avant la lettre. Ela vence um soberano autoritário e intolerante que é também um marido tirânico.

Essa ópera está sendo apresentada no Theatro São Pedro, e eu pude assistir à récita no domingo, dia 4. Ela ultrapassou, de longe, todas as boas expectativas.

Cena de 'L'Italiana in Algeri', em cartaz no Theatro São Pedro [Divulgação/Heloisa Bortz]
Cena de 'L'Italiana in Algeri', em cartaz no Theatro São Pedro [Divulgação/Heloisa Bortz]

A começar pela regência de Valentina Peleggi, que parece ter Rossini nas veias. Desde a abertura, com uma dinâmica cuidada, mas muito vivaz e inspirada, ela arrebatou o público. A finura de sua direção, que não perde nunca a energia, acompanhou a obra até o final, dominando esplendidamente todos os conjuntos mais estrambóticos. Como seria bom se essa maestrina dirigisse mais óperas em São Paulo, e não apenas Rossini. Embora o Theatro São Pedro bem pudesse programar obras-primas como Maometto Secondo, Tancredi ou Otello.
Inda mais que o elenco mostrou que, sem a menor sombra de dúvidas, temos cantores capazes de enfrentar as composições exigentes do cisne de Pesaro. 

Ana Lúcia Benedetti, no papel de Isabella, revelou-se um perfeito mezzo rossiniano, Cantora de altíssima categoria, seu timbre é um esplendor, a voz é homogênea dos graves aos agudos, e a musicalidade sem falhas.
Se Stephen Bronk, que estava com problemas causados por um resfriado, ressentiu as dificuldades da partitura, sua presença cênica foi impressionante, e um elemento poderoso para o sucesso da ópera. 

Lindoro, o jovem apaixonado foi interpretado por Aníbal Mancini (que foi também um ótimo Almaviva no Municipal, nosso maravilhoso tenore di grazia, excelente no palco, com a precisão, o lirismo e a beleza vocal que são os dele. Que volte sempre aos palcos!

A esse trio de protagonistas acrescentou-se um soberbo complemento de intérpretes. Que um cantor do calibre de Rodolfo Giuliani tenha assumido o pequeno papel de Haly é um luxo fora do comum. Ludmilla Bauerfeldt, como Elvira, a esposa desdenhada, soltou sua voz, que se projeta de modo excelente, e Douglas Hahn assumiu um Taddeo muito engraçado.

Isso permitiu conjuntos admiráveis, em que as vozes se entrosavam sem perder suas individualidades. Nas mais malucas invenções de Rossini, a segurança dos intérpretes e o valor da maestrina fizeram prodígios.

É impossível pedir melhor direção cênica do que a que Lívia Sabag concebeu, e cenários mais engenhosos do que os de Daniela Gogoni. Sabag, que nem sempre, no passado, me pareceu dominar a direção de atores, aqui foi perfeita. O período foi transposto para nossos dias, Mustafà foi sugerido como tirano chefe de milícia (irresistível o momento em que seus homens o celebram como chefe, fazendo arminha; e também, no final, quando é transformado pelo vestuário numa imagem do governador Doria); tudo parecia verossímil, natural, sem insistência, sem essa desastrosa mania de tantos diretores de cena em carregar as situações engraçadas como em teatro infantil. As soluções surgiam espontâneas, fluindo, convincentes. As metamorfoses do cenário também ocorreram com destreza, o que tornou o espetáculo ainda mais leve.

Em suma, creio que se trata da melhor apresentação de ópera que vi este ano em São Paulo.

‘L’Italiana in Algeri’ segue em cartaz no Theatro São Pedro até o dia 11 de agosto; clique aqui e veja mais informações no Roteiro do Site CONCERTO.

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Cena de 'L'Italiana in Algeri', em cartaz no Theatro São Pedro [Divulgação/Heloisa Bortz]
Cena de 'L'Italiana in Algeri', em cartaz no Theatro São Pedro [Divulgação/Heloisa Bortz]

 

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