Luciana Sayure, sofisticação espontânea

por Jorge Coli 28/11/2023

Quando algo é sofisticado? Quando é requintado, elegante, elevado.

Quando algo NÃO é sofisticado? Quando quer ser sofisticado. Quando se constrói imitando uma imagem da sofisticação. Sobretudo, quando não é natural.

A sofisticação intencional e preparada termina sendo vulgar. Quantos restaurantes, bares, hotéis, lojas, em bairros ou shoppings de luxo, se querem sofisticados, e são de uma banalidade desconcertante. Em suma: a autêntica sofisticação nunca tem consciência de si própria. Ela é espontânea.

Fiquei pensando nisso durante o intervalo do recital na Sala Watari, Barão Geraldo, Campinas, sábado passado. Foi o último do ano, encerrando a temporada. É um dos lugares mais sofisticados que conheço, porque nasceu de paixões autênticas e do desejo de fazer música com alta qualidade num lugar aprazível. É um caso muito raro.

Quase todos os meses, um público atento, respeitoso, verdadeiramente interessado, se reúne ali para ouvir recitais admiráveis numa boa intimidade. Não é uma questão de classe: é questão de amor sincero pela música.

O piano de cauda, trazido do Japão por Tohoru Watari, é excelente; a sala, com o teto e o assoalho de madeira, oferece uma ótima acústica; as cerâmicas de Silmara Watari, que ficam expostas, são lindas e, no final de cada recital, em boa camaradagem, três peças delas são sorteadas entre os ouvintes; os intérpretes, escolhidos pela curadoria de Mauricy Martin, têm qualidade vertiginosa. Tudo isso brotando como uma jabuticabeira dá jabuticabas: naturalmente.

Boa camaradagem: creio que essa é a definição mais adequada para o ambiente que se instala ali. Boa camaradagem na inconsciente sofisticação.

Este último recital do ano trouxe a pianista Luciana Sayure. Ela tem um toque delicado, de porcelana, acompanhado pela energia dos grandes contrastes dinâmicos.

Seu programa começou com três peças deliciosas de Cyro Pereira, pouco presentes no repertório dos pianistas: Noturno, Saudade e Estudo rítmico nº 3.

Segura, límpida, bem ordenada, seguiu-se a Sonata nº 1 de Scriabin. É uma obra muito difícil, mas Luciana Sayure demonstrou completo domínio e fluidez na execução da partitura, expressando as suas mudanças dramáticas de humor, de cor, de dinâmica.

Depois do intervalo, o recital retomou com Hommage à Chopin. Villa-Lobos, ao lado de outros compositores de seu tempo, fora convidado a compor uma obra por encomenda da Unesco para a celebração do centenário da morte de Chopin, em 1949. Nela, o compositor brasileiro não busca nenhum pasticho: reconhece-se imediatamente suas peculiaridades estilísticas, em particular as células de melodias curtas que se repetem, a melodia seresteira, o ritmo característico, aos quais são incorporados traços evidentemente chopinianos, numa espécie de colagem de grande invenção e, sobretudo, de forte personalidade.

A força estrutural das interpretações, que Luciana Sayure equilibra sempre com um fluente sentido da narração, veio confirmado no Improviso nº 2 de Chopin e no Scherzo nº 2, do mesmo compositor, que concluíram o programa.

Concluíram o programa, mas não a noitada, que ainda teve dois bis adoráveis. O primeiro foi o minueto da Sonata para violino nº 21 de Mozart: Luciana Sayure convidou seu filho, Tomás Zamith, um brilhante jovem violinista de 13 anos, como seu parceiro. Ele deu perfeitamente conta do recado com brio e expressão e foi saudado com uma ovação entusiasmada. Em seguida, Luciana Sayure chamou seu marido, Alexandre Zamith, para tocar as Danças de Casamento números 2 e 3 de Ligeti: o casal comemora 30 anos de união!

Foi um fecho de ouro para a temporada deste ano. No próximo, a programação já quase completa, promete grandes momentos. 

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A pianista Luciana Sayure [Divulgação]
A pianista Luciana Sayure [Divulgação]

 

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