O Nabucco de Christiane Jatahy, em cartaz até sábado no Theatro Municipal de São Paulo, é uma ópera sobre o poder. O de Verdi também o era, ao narrar a história de perseguição de Nabucodonosor ao povo hebreu, que eventualmente leva a uma revelação individual e à conversão do rei. Nos anos 1840, a obra não demorou a ganhar significado alheio ao contexto imediato de seu libreto, tornando-se símbolo do desejo de reunificação italiana. Quase dois séculos depois, Jatahy também entende a ópera, a terceira do compositor, para além da linearidade da história que narra. E o faz de duas maneiras.
Há, primeiro, uma tentativa de olhar de forma diferente para as dinâmicas estabelecidas entre os personagens. Nabucco é o rei que, ao entender a si próprio como Deus, submete a crença ao seu desejo autoritário. Mas, na leitura da diretora, Zaccaria não é o líder inspirado que tenta, por meio da palavra, dar esperança ao povo hebreu, mas também agente de violência e guerra. Da mesma forma, a história de Fenena e Ismael, sobrinho do Rei de Jerusalém, dificilmente pode ser entendida como uma defesa do amor como conciliação: a presença em cena da filha sequestrada de Nabucco é marcada pela angústia de quem vê sua história como efeito colateral de uma disputa de poder – e isso sem dúvida amplia sua importância dramática. E Abigaile, a filha de Nabucco que se descobre escrava, não ganha cores histriônicas ou caricatas, é também fruto de um contexto que, entre drama individual e coletivo, ela tenta superar, ainda que, para tanto, lance mão dos mesmos artifícios que o pai.
Tal leitura quebra as hierarquias internas do libreto. Não há heróis, vilões, redenção. E abre caminho para que Jatahy trabalhe uma segunda camada em seu jogo de aproximação e afastamento do original. Ela coloca em cena refugiados de diferentes etnias e culturas misturados ao coro e aos protagonistas. Não é uma presença intrusiva, pelo contrário: a intensidade dramática que a escolha carrega vem justamente da forma orgânica com que todos se unem à movimentação cênica, ora como parte da ação, ora como observadores de uma história que conhecem bem demais. Se a oposição entre o individual e o coletivo é um dos grandes temas de Verdi, funciona bem o recurso de filmagem em tempo real do espetáculo, com imagens que tratam personagens e figurantes como grupo e, ao mesmo tempo, destacam as individualidades que dão cara às consequências desse conflito.
Da mesma forma, os dois enormes espelhos que compõem a cenografia, assinada por Thomas Walgrave, Marcelo Lipiani e pela própria diretora, inserem o público na narrativa, assim como a presença do coro em diferentes locais da plateia. Mas nesse sentido o signo mais forte e de fato original utilizado pela diretora é o da água. No imaginário do público, ela pode remeter a cenas como a dos imigrantes buscando ultrapassar a fronteira do México em direção aos Estados Unidos ou às embarcações que tentam transpor o mar levando sonhos de uma nova vida. Mas é possível pensar de forma menos figurativa. Todos, refugiados e protagonistas, passam pelo espelho de água criado no centro do palco – e isso porque também são parte daquela mesma realidade. Em outras palavras: drama individual, poderes autoritários, preconceito, religião, tudo se mistura na imagem de uma criança sem vida carregada pelo mar até a areia. A marca de água é uma marca de sangue.
E há, claro, o final da ópera. Jathay encomendou ao compositor Antonino Fogliani uma coda a Nabucco. Após a cena da morte de Abigail, a orquestra se afasta por meio de uma escrita sinuosa da música de Verdi e, em seguida, se cala, para que o coro repita, na plateia e, desta vez a cappella, o coro Va Pensiero. É um contraponto necessário para a leitura de Jatahy, não como simples mensagem de esperança, mas como forma de se afastar da cena coral final, Imenso Jeová, que, construída de maneira quase violenta, com coro e protagonistas encarando o público, é, na chave proposta pela diretora, o resultado não de entendimento, mas da supremacia de uma crença sobre outra. A repetição de Va Pensiero, assim, extirpa as palavras de seu contexto original para dar a elas um outro significado, mais aberto, e dramaticamente eficaz.
Se as ideias são estimulantes, e o componente visual dá a elas forma vívida e convincente, a direção de atores, no que diz respeito aos protagonistas, tira muito da força do espetáculo e da música de Verdi. O exemplo mais evidente talvez seja o dueto entre Abigaile e Nabucco no terceiro ato. Sozinhos no palco praticamente vazio, Marsha Thompson e Alberto Gazale parecem perdidos, recorrendo a expressões e gestuais amaneirados que tornam a cena profundamente tediosa.
Mas a responsabilidade é também dos cantores. Na récita de quarta-feira, dia 2, Thompson pareceu no limite de suas possibilidades no papel de Abigaile e a preocupação em dar conta minimamente das exigências quase impossíveis da escrita de Verdi para a personagem não lhe deu a oportunidade de desenvolver uma caracterização vocal de fato convincente (musical e cenicamente). A voz de Gazale, por sua vez, perde frequentemente o colorido e o resultado geral fica aquém das possibilidades propostas pelo compositor. Savio Sperandio saiu-se melhor como Zaccaria, crescendo ao longo da noite e, aos poucos, dando forma a seus graves poderosos. No final das contas, porém, no Nabucco do Municipal, os destaques vocais foram a intensa Fenena de Luisa Francesconi e o heroico Ismael de Enrique Bravo. Façam as contas.
Roberto Minczuk mostrou-se muito à vontade em seu segundo Nabucco (foi com a ópera que estreou como regente da casa em produções líricas, em 2017). Regeu sem exageros, mas demarcando de forma clara os momentos em que Verdi começa a entender a orquestra de uma nova forma, potencializando o drama na relação com as vozes. Com isso, permitiu à Orquestra Sinfônica Municipal uma leitura idiomática, coisa de uma verdadeira orquestra de ópera. Colocar o Coro Lírico Municipal espalhado pela plateia, no entanto, teve o efeito colateral indesejado de expor individualmente seus integrantes. Ainda assim o desafio que se coloca para o conjunto, e ele não é novo, é outro: trocar a força pela intensidade.
Uma nota final: a palavra "Israel" foi retirada das legendas projetadas durante o espetáculo. Se foi uma forma de não associar o espetáculo à atual crise no Oriente Médio e todos os paradoxos que ela comporta, a montagem acabou por recair no próprio erro que condena, o de reescrever a história por meio da supressão de parte dela. Mas me parece uma leitura exagerada. Talvez tenha sido apenas uma maneira de deixar claro que o espetáculo pretendia ir além do conflito específico narrado pelo libreto. Se foi esse o caso, a montagem não acreditou em sua própria capacidade de mostrar ao público, no palco, o que propunha.
['Nabucco' segue em cartaz no Theatro Municipal até o dia 5 de outubro; veja mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO]
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Comentários
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A crítica desse Sr. João…
A crítica desse Sr. João Paulo acaricia a diretora de cena e o maestro regente, os quais são os responsáveis pelo caos desta produção de Nabucco, de Giuseppe Verdi, para nunca mais subir ao palco de Teatro Municipal de São Paulo.