A música atual encontrou pouso num oásis artístico

BRUMADINHO (MG) –  Os três dias do festival Jardim Sonoro, ocorrido entre sexta, 12, e domingo, 14, no Inhotim, foram uma celebração da música atual. Sucesso de público e de programação, trouxe artistas com propostas musicais instigantes para ouvidos atentos.

Pela manhã o público já podia se acomodar nos gramados em torno do primeiro dos três palcos disponíveis. Batizado de True Rouge, em alusão à galeria do artista Tunga, este palco recebeu apresentações solo e duos. 

Foi ali que os sons viscerais da excelente saxofonista Zoh Amba se fizeram ouvir, na sexta-feira. Seus improvisos destemidos transformavam citações de músicas gospel norte-americanas (ela é do Tennessee) em momentos de pura noise music, o que aturdiu alguns e encantou outros. “Vocês podem pensar que esses são sons agressivos, mas na verdade é muito bonito e doce”, ela comentou, durante a pausa entre uma e outra música. 

No dia seguinte, o palco True Rouge também recebeu o duo formado pelo maliano Ballaké Sissoko e o violoncelista francês Vincent Ségal. Sissoko tocou kora (ou corá), um instrumento de 21 cordas originário da África Ocidental. A sonoridade transita entre a de uma harpa e um alaúde, o que dialoga muito bem com o violoncelo. A simbiose entre os dois artistas é testemunho da parceria de longa data, com vários álbuns já lançados; e a versatilidade tímbrica conseguida por Ségal, unida à maestria com que Sissoko dominava o corá, encheu os jardins do Inhotim com uma música intimista, calma, fluida, que tinha tudo a ver com o entorno.

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A saxofonista Zoh Amba [Divulgação/Daniela Paoliello]
A saxofonista Zoh Amba [Divulgação/Daniela Paoliello]

 

No domingo foi a vez do contrabaixista francês Kham Meslien ocupar aquele espaço. Sozinho, o instrumentista conseguiu atingir a textura de um grupo inteiro a partir do uso de samples, que eram gravados em tempo real. Meslien construía linha a linha e, sobre a gravação, que passava a ser executada, ele tocava seus temas e improvisos. Além do contrabaixo, ele também tocou charango, instrumento boliviano que lembra bastante o bandolim. Aplaudido de pé, infelizmente não pôde satisfazer o desejo do público por um bis devido ao horário apertado entre uma apresentação e outra.

Após as performances no True Rouge, uma pausa para o almoço e, quem sabe, uma ida rápida a alguma das inúmeras instalações e galerias que fazem do Inhotim o maior museu a céu aberto da América Latina.

As apresentações da tarde aconteceram no palco Tamboril (o nome de uma árvore centenária), que abrigou formações um pouco maiores. O Natural Information Society, de Chicago, trouxe criações minimalistas de longa duração que levaram o público a um quase transe, no sábado. A formação da banda unia harmônio, clarone, percussão e gimbri, um baixo originário do Marrocos que leva três cordas.

Juçara Marçal, Gui Amabis, Rodrigo Campos e Regis Damasceno trouxeram o projeto Sambas do Absurdo para o mesmo palco, durante a programação de domingo. Pode-se pensar que temas como o sofrimento do indivíduo diante da insensatez do mundo que o sufoca – assunto que permeia O Mito de Sísifo, de Albert Camus, inspiração direta para o primeiro álbum do projeto – não caibam na retórica do samba, mas seria descuidado não lembrar que o gênero carrega sua parcela de melancolia, aqui trazida para o primeiro plano em vários momentos.

Enquanto as apresentações no Tamboril aconteciam, uma parte do público já esperava no maior palco do festival, o Magic Square, localizado em frente à obra de mesmo nome criada por Hélio Oiticica. O recorde de público sem dúvida ocorreu para o show de Paulinho da Viola, no sábado, dia em que Inhotim teve seus ingressos esgotados. Os fãs acabaram ficando também para curtir, logo após, a discotecagem do músico e escritor angolano Kalaf Epalanga, que já tinha participado de um bate-papo literário na manhã de sexta-feira. 

O contrabaixista Kham Meslien [Divulgação/Daniela Paoliello]
O contrabaixista Kham Meslien [Divulgação/Daniela Paoliello]

Crianças e adultos fruíam o espaço, deitados na grama em frente ao grande lago ou em pé, dançando. Alguns até interagiam com a obra de Oiticica, que aliás foi idealizada pelo artista justamente com esse propósito: para que pessoas pudessem circular por ela.

O festival teve seu encerramento em alto e bom som com a orquestra afro percussiva Aguidavi do Jêje, vinda de Salvador. A potência sonora é difícil de descrever em palavras sem acabar caindo em lugares-comuns próprios do que se diz da percussão brasileira. Clichê dizer da rítmica precisa e ao mesmo tempo gingada do grupo, clichê dizer da linguagem brasileira impossível de ser traduzida na notação musical tradicional europeia. 

Do ponto de vista da escuta, permanece impressionante ouvir a capacidade de invenção única de solos alternados aqui e ali, sobrepondo-se às levadas de violão, num contexto de formação que une agogôs, atabaques, caxixis, presenteando o público com uma performance para além do ensaio e da execução – é a música como vivência, enraizada nos gestos, misturada com a dança de terreiro que às vezes um ou dois dos músicos mostravam no centro do palco.

Com formato tradicional e conteúdo ousado, O Jardim Sonoro trouxe a Inhotim quase 9 mil pessoas durante seus três dias de programação. A curadoria do evento, promovida por Leandro Oliveira, reverbera a programação musical que já vem sendo construída por ele desde o ano passado: o repertório abordado pela Orquestra Inhotim e seu quarteto protagoniza a música de concerto dos séculos XX e XXI, o que é uma orientação fundamental para um museu de arte contemporânea. 

Compreende-se que uma primeira edição de festival tem de passar por vários testes e desafios logísticos, desde a organização do line-up escolhido até a avaliação dos resultados. Mesmo assim, vale dizer que, para as próximas edições, seria importante haver apresentações de música nova também por parte dos membros da orquestra do instituto e de grupos brasileiros de música experimental e de concerto. 

Por outro lado, o Jardim Sonoro mirou e acertou em um ponto importante: na proposição de uma fluidez possível entre a música experimental e a música popular, divorciadas há tempo demais. Onde, em um dia só, um fã de Paulinho da Viola teria podido assistir a um duo de corá e violoncelo? Onde a apresentação de um contrabaixista de jazz contemporâneo precedeu a performance de uma orquestra afro percussiva?

Sabemos que há um descompasso na aceitação do público quando comparamos as artes plásticas à música de concerto feita hoje. Isso se dá por muitos fatores, do qual o mais importante talvez seja a falta de espaços que apostem em novas estéticas sonoras e de um público que esteja aberto a conhecê-las. Inhotim é o lugar perfeito para isso: o sucesso do festival foi a prova definitiva. 

A jornalista viajou a convite da organização do festival

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