Já recebi como resposta de um célebre tenor que, na Tosca, de Puccini, o que importa é o componente político – e isso naturalmente faz do pintor Mario Cavaradossi seu personagem principal. Que bobagem. Mas na versão em concerto da ópera apresentada no Theatro Municipal de São Paulo na última sexta-feira (com repetição neste domingo, às 17 horas), foram as vozes masculinas a se destacar em uma leitura que, nem sempre sutil, cresceu ao longo da noite.
O tenor Atalla Ayan está em um momento de troca de repertório. Ficam para trás os papeis de tenor lírico (como o Fenton, do Falstaff, que ele gravou em 2016 no Festival de Verbier, em registro que acaba de ser lançado) e entram em cena os de tenor spinto. Ayan cantou O guarani, de Carlos Gomes, em São Paulo, e segue agora para récitas de Carmen, de Bizet, e Il Trovatore, de Verdi, em Stuttgart.
É sempre um momento delicado e que não se consolida de uma hora para outra. Mas seu Cavaradossi, de bonitas cores escuras, está repleto de qualidades. O modo como a voz se adapta tanto às passagens mais líricas quanto aos momentos heroicos; a atenção ao legato; a sempre elegante construção das frases; agudos orgânicos, nunca forçados ou artificiais – foi um cantor consciente das possibilidades da própria voz o da apresentação de sexta, que só não bisou a ária do terceiro ato, “E lucevan le stelle”, porque não quis.
O célebre barítono americano Cornell MacNeill disse certa vez que a interpretação do barão Scarpia se define na primeira frase do personagem, quando ele adentra o palco criticando a bagunça na Basílica de Sant'Andrea della Valle – "Un tal baccano in chiesa!". Entrando pelo meio da plateia, Leonardo Neiva propôs ali um Scarpia sem histrionismos ou arroubos veristas, acima de tudo austero. E, se sua ária no final do ato, uma das construções mais interessantes do teatro de Puccini, aliando religiosidade, desejo e morte, já revelava uma interpretação atenta às palavras, o segundo ato deixou ainda mais clara a caracterização interessante do personagem, à vontade no caráter declamatório do canto e atenta às palavras.
O espetáculo cresceu do ponto de vista da leitura musical no segundo ato. No primeiro, as escolhas de tempo do maestro Roberto Minczuk à frente da Orquestra Sinfônica Municipal, associada a alguns deslizes pontuais e a uma qualidade quase abrasiva dos metais, passou por cima dos contrastes da partitura – se tudo pende para o forte, do dueto de amor ao diálogo entre Tosca e Scarpia, o final com o coro, ainda que construído de forma monumental, com ajuda das vozes do Coro Lírico Municipal, perde muito de seu poder dramático.
Já no segundo e no terceiro atos, Minczuk soube encontrar, mesmo em meio aos andamentos rápidos, os espaços para que o drama respirasse em sua complexidade de climas, oferecendo à orquestra a possibilidade de revelar seus muitos talentos – a flauta de Marcelo Barboza e o clarinete de Camila Barrientos Ossio entre eles.
Em meio a essa atmosfera mais matizada, tornaram-se evidentes os problemas na caracterização de Tosca oferecida pela soprano italiana Carmen Giannattasio, que o público do Municipal conhecia pessoalmente de um Réquiem de Verdi apresentado em 2010. O canto se perde em meio à profusão de cacoetes veristas, que não escondem as dificuldades de emissão na região mais grave e tornam difícil a compreensão do texto. Justiça seja feita, sua leitura para Vissi d’Arte revelou uma intérprete sensível – mas deixou, por isso mesmo, um gosto amargo com relação a seu desempenho na récita como um todo.
Andrey Mira (Angelotti e Carcereiro), Leonardo Pace (Sacristão e Sciarrone), Ricardo Gaio (Spoletta) e Isabella Lucci (Pastor) desempenharam com eficiência seus papeis.
["Tosca" será apresentada novamente neste domingo, dia 13; clique aqui para ver mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO]
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