O encanto das cordas, em duo e trio

por João Marcos Coelho 07/08/2022

A Azul Music lançou praticamente ao mesmo tempo dois álbuns com música camerística para cordas: um duo violino-viola e um trio de violino-viola-violoncelo. Com certeza, dois excelentes modos de se saborear a música doméstica entre as décadas finais do século XVIII e as iniciais do século XIX.  

Começo com o álbum Cinco Divertimentos de Mozart. O divertimento é território das obras instrumentais leves por definição, agradáveis, mesmo quando sua construção é mais elaborada, cujo apogeu aconteceu naquele período histórico. Compositores de gênio como Haydn e Mozart usaram todo o seu talento para criar música que apenas pretende, como prescrevia um tratado da época, ser “quadros sonoros que ambicionam mais o deleite dos ouvidos do que a expressão de uma emoção bem definida em todas as suas nuances”.

O teórico Heinrich Christoph Koch, que viveu na segunda metade do século 18 – justamente o momento em que os divertimentos alcançaram um momento único, observou que os movimentos de um divertimento “não são polifônicos nem tão intensivamente trabalhados como as verdadeiras sonatas”.

Divertimento era uma palavra-baú, onde cabia de quase tudo, de cassazione a noturno, de serenata  à tafelmusik, ou música de mesa. Em comum, todos em vários movimentos, em geral de 3 a 7. E todos soando bonito, agradável.

Como é música que em geral não oferece grandes obstáculos técnicos, acaba sendo tocada com certo desleixo por músicos mais talentosos, ou de forma escolar por aprendizes. O melhor dos mundos acontece quando músicos de excelência jogam-se inteiros na execução desta música que, quando é assinada por Mozart, está longe de ser circunstancial. É magnífica. Este é o diferencial deste delicioso álbum que reúne três dos nossos melhores instrumentistas de cordas: o dublê de maestro e violinista Claudio Cruz, Gabriel Marin à viola e Alceu Reis ao violoncelo. Eles fazem música juntos há muitos anos.

Alceu Reis, Claudio Cruz e Gabriel Marin [Divulgação/Azul Music]
Alceu Reis, Claudio Cruz e Gabriel Marin [Divulgação/Azul Music]

Os divertimentos Anh. 229/139b, de Mozart, foram originalmente compostos para o “corno di bassetto”, versão antiga do clarinete baixo, aqui arranjados para trio de cordas. Cada divertimento possui cinco movimentos. Vinte e cinco movimentos curtíssimos, alguns de pouco mais de um minuto, que atendem por allegros, allegrettos, rondós, minuetos, adagios, larghettos, até uma polonaise e uma romança.

Simultaneamente, a mesma gravadora lançou aqui o álbum Debut, do duo de músicos brasileiros radicados no Canadá Fabíola Amorim e Vladimir Rufino. Ele ao violino, ela à viola. Juntos e afetiva e musicalmente ligados, desde que, já formados em música pela Universidade Federal da Paraíba, transferiram-se em 2005 para o Canadá, onde são professores e integrantes do Quarteto de Cordas Vaughan. O debut do título remete ao primeiro álbum como duo, já que possuem diversas outras gravações em formações diferentes.

Em comum com o álbum de divertimentos da trinca Cruz-Marin-Reis, eles tocam peças de compositores contemporâneos exatos de Mozart e Beethoven, como o checo Paul Wranitzky e o alemão Franz Anton Hoffmeister. Ambos eram muito populares. O checo vendia partituras de quartetos de cordas e outras formações camerísticas em Viena como pãozinho quente; e o alemão foi editor de Haydn, Mozart e Beethoven, além de compositor fertilíssimo (só de peças para flauta, compôs 350).

O duo Amorim-Rufino avança pelo século XX, interpretando obras de outro checo, Bohuslav Martinu, e do brasileiro Villa-Lobos, além de uma primeira gravação mundial de obra que encomendaram ao compositor canadense contemporâneo Franz Horvat. O projeto foi concebido durante a pandemia.

Este tipo de repertório é ainda menos conhecido do que o dos trios de cordas. Mas oferece gemas como os Três Madrigais, consistentes peças de Martinu nos anos finais de sua vida, em 1947, quando já estava radicado nos Estados Unidos. Mais uma coincidência a uni-lo a Villa-Lobos. Eles nasceram com três anos de distância (o checo em 1890, Villa em 1887), foram amigos em Paris nos anos 1920; e morreram no mesmo ano, 1959.

O duo de Villa, dedicado a Paulina d’Ambrosio, é de 1946, tem encorpados três movimentos, e foi composto ao mesmo tempo em que fez uma importante revisão de seu primeiro quarteto de cordas. Já Two Hearts in Concert, de Horvat, é curta, menos de quatro minutos, e lírica o suficiente para corresponder ao título amoroso.

Ambos os álbuns recomendáveis, com destaque para os notáveis divertimentos de Mozart com Cláudio Cruz, Gabriel Marin e Alceu Reis, um daqueles pontos fora da curva. Aliás, mais um, conquistado por Cláudio Cruz, um dos grandes músicos brasileiros do nosso tempo.

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