Com explosão de sons e cores, Dos cânions às estrelas... é ponto alto da temporada
Para quem se interessa pela música do século XX, o compositor francês Olivier Messiaen (1908-1992) é figura incontornável. Messiaen dá sequência ao desenvolvimento da linguagem musical francesa pós-Debussy, mas de forma muito pessoal. Ele dominou as técnicas da música de seu tempo, de Schönberg e Stravinsky, e exerceu importante atividade didática, tendo sido professor no Conservatório de Paris entre 1941 e 1978. Faz parte de currículo de todo estudante de composição a análise de sua obra para piano Modo de valores e de intensidades, em que ele aplica o método do serialismo dodecafônico, de maneira muito rigorosa, a outros parâmetros musicais, como as dinâmicas (intensidade do som) e as durações.
Mas a importância de Messiaen vai muito além de seus tratados relacionados às técnicas composicionais – esses, sim, fizeram dele um dos mais importantes professores e influenciadores da música do segundo pós-guerra. Talvez por sua religiosidade – Messiaen era católico praticante – e sua forte ligação com a natureza e especialmente com os pássaros, sua música, impregnada de rica invenção, alcança camadas profundas (ou elevadas?) da condição e das emoções humanas.
É isso também que se transmitiu na espetacular interpretação de Dos cânions às estrelas... pela Osesp, no último fim de semana (assisti ao concerto de sexta-feira, dia 8 de novembro). Dirigida com concentração e envolvimento pelo maestro suíço Heinz Holliger, que foi colega de Messiaen e apresenta a obra desde a década de 1980, a orquestra, em formação camerística, mas com amplo aparato percussivo, e acrescida de solos de piano (Ueli Wiget), trompa (Luiz Garcia), marimba (Ricardo Righini) e glockenspiel (Eduardo Gianesella), demonstrou rara sinergia em um resultado artístico de alto nível. Ainda que todos os quatro solistas tivessem desempenhado suas partes com muita competência, quero destacar a incrível sonoridade extraída pelo pianista Ueli Wiget e a interpretação espetacular de Luiz Garcia – em um dos vários trechos impactantes da noite, o solo de trompa no início da segunda parte, Garcia toca para dentro da caixa do piano fazendo ressoar os harmônicos das cordas do instrumento, em um delicado efeito sonoro.
Dos cânions às estrelas... é dividida em três partes, com um total de 12 movimentos. Estreada em 1974, uma encomenda da mecenas norte-americana Alice Tully para a comemoração dos 200 anos da declaração da independência dos Estados Unidos, a obra segue um programa que fala dos cânions, do deserto, da natureza e dos pássaros do Oeste norte-americano. Dois movimentos são longas cadências, uma da trompa – essa a que me referi acima – e uma do piano. E esses dois instrumentos são fios condutores da obra, em introduções temáticas e interlúdios.
Apesar de sua longa duração (1 hora e 50 minutos) e rica invenção, Dos cânions às estrelas... possui uma impressionante integridade. A lógica do discurso musical não funciona como na música tradicional, em que temas são apresentados, desenvolvidos e reapresentados. Aqui, a forma são quadros sonoros – caracterizados eventualmente por melodias, mas muito mais por “expressões” musicais moldadas pelo conjunto – que se sucedem em uma bem costurada narração. Difícil descrever, mas pense em um caleidoscópio e suas imagens. E as imagens de Messiaen são coloridas, brilhantes, sugestivas.
Ainda que surjam, aqui e ali, inesperadamente, acordes tonais, em nenhum momento se espera encadeamentos ou resoluções de lógica tradicional. As simultaneidades de som evitam terças e soam ocas, resultando em sonoridades de grande luminosidade e impacto. A isso se soma a ampla riqueza tímbrica proporcionada pelas percussões, pelos sinos tubulares, pelo geofone (invenção do compositor), pelo glockenspiel, pela marimba e pela exploração de harmônicos, registros e recursos pouco usuais nas madeiras, nos metais e nas cordas. E uma abundância impressionante de efeitos acústicos, indo do ruído do vento a extrusões sonoras que lembram um órgão.
Para além de Schönberg (e do dodecafonismo da segunda escola de Viena), em que se buscava a superação da tonalidade pela sua negação, a criação de Messiaen se sobrepõe às tensões harmônicas tradicionais, faz com que elas se tornem irrelevantes. A gente não pensa mais nelas, a gente não sente falta delas. Messiaen trabalha com malhas sonoras, com quadros sonoros, que se encadeiam, que se desenvolvem e que se completam em um discurso musical absolutamente orgânico. É coisa de gênio.
Em recente artigo no caderno “Aliás” do Estadão, o jornalista João Marcos Coelho (também colunista deste espaço e da Revista CONCERTO) escreve sobre George Steiner, o crítico cultural e amante da música, que faz a distinção entre “ouvir” música – algo como tê-la como música de fundo – e “escutar” música – em que se escuta atentamente procurando estabelecer conexões e sentidos. Quem foi ao concerto da Osesp para ouvir música, talvez não tenha entendido muita coisa. Agora, quem parou e escutou, viajou dos cânions às estrelas...
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