O gênio de Messiaen em apresentação memorável da Osesp

por Nelson Rubens Kunze 11/11/2019

Com explosão de sons e cores, Dos cânions às estrelas... é ponto alto da temporada

Para quem se interessa pela música do século XX, o compositor francês Olivier Messiaen (1908-1992) é figura incontornável. Messiaen dá sequência ao desenvolvimento da linguagem musical francesa pós-Debussy, mas de forma muito pessoal. Ele dominou as técnicas da música de seu tempo, de Schönberg e Stravinsky, e exerceu importante atividade didática, tendo sido professor no Conservatório de Paris entre 1941 e 1978. Faz parte de currículo de todo estudante de composição a análise de sua obra para piano Modo de valores e de intensidades, em que ele aplica o método do serialismo dodecafônico, de maneira muito rigorosa, a outros parâmetros musicais, como as dinâmicas (intensidade do som) e as durações.

Mas a importância de Messiaen vai muito além de seus tratados relacionados às técnicas composicionais – esses, sim, fizeram dele um dos mais importantes professores e influenciadores da música do segundo pós-guerra. Talvez por sua religiosidade – Messiaen era católico praticante – e sua forte ligação com a natureza e especialmente com os pássaros, sua música, impregnada de rica invenção, alcança camadas profundas (ou elevadas?) da condição e das emoções humanas.

É isso também que se transmitiu na espetacular interpretação de Dos cânions às estrelas... pela Osesp, no último fim de semana (assisti ao concerto de sexta-feira, dia 8 de novembro). Dirigida com concentração e envolvimento pelo maestro suíço Heinz Holliger, que foi colega de Messiaen e apresenta a obra desde a década de 1980, a orquestra, em formação camerística, mas com amplo aparato percussivo, e acrescida de solos de piano (Ueli Wiget), trompa (Luiz Garcia), marimba (Ricardo Righini) e glockenspiel (Eduardo Gianesella), demonstrou rara sinergia em um resultado artístico de alto nível. Ainda que todos os quatro solistas tivessem desempenhado suas partes com muita competência, quero destacar a incrível sonoridade extraída pelo pianista Ueli Wiget e a interpretação espetacular de Luiz Garcia – em um dos vários trechos impactantes da noite, o solo de trompa no início da segunda parte, Garcia toca para dentro da caixa do piano fazendo ressoar os harmônicos das cordas do instrumento, em um delicado efeito sonoro.

Solistas e maestro na apresentação da obra de Messiaen [Revista CONCERTO]
Eduardo Gianesella, Luiz Garcia, Ueli Wiget, Ricardo Righini e Heinz Holliger: excelência musical [Revista CONCERTO]

Dos cânions às estrelas... é dividida em três partes, com um total de 12 movimentos. Estreada em 1974, uma encomenda da mecenas norte-americana Alice Tully para a comemoração dos 200 anos da declaração da independência dos Estados Unidos, a obra segue um programa que fala dos cânions, do deserto, da natureza e dos pássaros do Oeste norte-americano. Dois movimentos são longas cadências, uma da trompa – essa a que me referi acima – e uma do piano. E esses dois instrumentos são fios condutores da obra, em introduções temáticas e interlúdios.

Apesar de sua longa duração (1 hora e 50 minutos) e rica invenção, Dos cânions às estrelas... possui uma impressionante integridade. A lógica do discurso musical não funciona como na música tradicional, em que temas são apresentados, desenvolvidos e reapresentados. Aqui, a forma são quadros sonoros – caracterizados eventualmente por melodias, mas muito mais por “expressões” musicais moldadas pelo conjunto – que se sucedem em uma bem costurada narração. Difícil descrever, mas pense em um caleidoscópio e suas imagens. E as imagens de Messiaen são coloridas, brilhantes, sugestivas.

Ainda que surjam, aqui e ali, inesperadamente, acordes tonais, em nenhum momento se espera encadeamentos ou resoluções de lógica tradicional. As simultaneidades de som evitam terças e soam ocas, resultando em sonoridades de grande luminosidade e impacto. A isso se soma a ampla riqueza tímbrica proporcionada pelas percussões, pelos sinos tubulares, pelo geofone (invenção do compositor), pelo glockenspiel, pela marimba e pela exploração de harmônicos, registros e recursos pouco usuais nas madeiras, nos metais e nas cordas. E uma abundância impressionante de efeitos acústicos, indo do ruído do vento a extrusões sonoras que lembram um órgão.

Para além de Schönberg (e do dodecafonismo da segunda escola de Viena), em que se buscava a superação da tonalidade pela sua negação, a criação de Messiaen se sobrepõe às tensões harmônicas tradicionais, faz com que elas se tornem irrelevantes. A gente não pensa mais nelas, a gente não sente falta delas. Messiaen trabalha com malhas sonoras, com quadros sonoros, que se encadeiam, que se desenvolvem e que se completam em um discurso musical absolutamente orgânico. É coisa de gênio. 

Em recente artigo no caderno “Aliás” do Estadão, o jornalista João Marcos Coelho (também colunista deste espaço e da Revista CONCERTO) escreve sobre George Steiner, o crítico cultural e amante da música, que faz a distinção entre “ouvir” música – algo como tê-la como música de fundo – e “escutar” música – em que se escuta atentamente procurando estabelecer conexões e sentidos. Quem foi ao concerto da Osesp para ouvir música, talvez não tenha entendido muita coisa. Agora, quem parou e escutou, viajou dos cânions às estrelas...

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