O machete de André Mehmari tem gosto de ‘quero mais’

Em uma criação primorosa, Mehmari conseguiu transportar para o código rigidamente cifrado da partitura “erudita” a organicidade e a gestual espontaneidade do jogo de citações e da transgressão de limites estéticos que constituem o encanto de sua atuação como pianista “popular”

A fina ironia do Bruxo do Cosme Velho encontrou sua mais deliciosa tradução musical em André Mehmari. Primeira ópera do compositor, O machete é divertida de ver, gostosa de ouvir – e ainda nos brinda com uma reflexão sobre as fronteiras entre o popular e o erudito.

Em 1883, quando Ernesto Nazareth (1863-1934) ainda estava dando os primeiros passos na carreira, Machado de Assis redigiu um de seus contos mais renomados: Um homem célebre, que conta a história de Pestana, “famoso autor de tantas polcas amadas”, que repudia suas peças populares e esgota-se, inutilmente, no “esforço de compor alguma cousa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann”. Algo como uma premonição do que ocorreria com o próprio Nazareth, que, ao conhecer Arthur Rubinstein, quis tocar Chopin para o pianista polonês, em vez de suas próprias obras, e exclamou aos prantos, publicamente, em recital de Guiomar Novaes, que gostaria de ter sido a pianista paulista.

Pois bem. Mehmari garimpou um conto anterior e menos conhecido de Machado: O machete, de 1878, cujo protagonista, Inácio Ramos, violoncelista, perde a mulher, Carlota para Barbosa, que a seduz tocando algo que “não era Weber nem Mozart; era uma cantiga do tempo e da rua, obra de ocasião”. Seu instrumento? O machete, que o dicionário Houaiss define como “instrumento de origem portuguesa, maior que o cavaquinho e menor que a viola, com quatro ou cinco cordas duplas e dedilháveis, afinadas em quintas”.

Mehmari, embora seja um dos mais requisitados compositores brasileiros do terceiro milênio, volta e meia tem de se defrontar com filhotes extemporâneos de Adorno a patrulhá-lo pelo “impuro” elemento popular em sua música

O tema tem profundas ressonâncias na trajetória de Mehmari, que, embora seja um dos mais requisitados compositores brasileiros do terceiro milênio, volta e meia tem de se defrontar com filhotes extemporâneos de Adorno a patrulhá-lo pelo “impuro” elemento popular em sua música – infindável repetição das vaias ao Concerto carioca nº 2, de Radamés Gnattali, no Festival da Guanabara, em 1969.

O fato é que, aos 46 anos, Mehmari encontra-se na plenitude de seus poderes criativos, e conseguiu transportar para o código rigidamente cifrado da partitura “erudita” a organicidade e a gestual espontaneidade do jogo de citações e da transgressão de limites estéticos que constituem o encanto de sua atuação como pianista “popular”.

Em O machete, o libreto também é de sua autoria, e ele conseguiu escapar do defeito que costuma acometer os neófitos no campo da ópera, que é a prolixidade. Além de escolher um conto conciso, Mehmari não se derrama em excessos de palavras, deixando espaço para a música respirar. Manejando a dicção brasileira do português com bom gosto e sabedoria, emprega também no libreto o procedimento que se tornou marca registrada de sua música, ao trazer para o texto linhas de Olavo Bilac, Gregório de Mattos, Castro Alves, uma tradução para o português da célebre Habanera, da Carmen, de Bizet, bem como as letras de canções de Chiquinha Gonzaga – às quais, contudo, adiciona sua própria música.

Foi fundamental sua química com Rafael Cesário, de sonoridade cálida e musicalidade exuberante, escalado para tocar a parte solista de violoncelo que Mehmari previu como uma espécie de alter ego musical de Inácio

Chiquinha e Nazareth integram a teia de citações musicais que engendram o tecido da ópera. Aproximando o contínuo barroco da linguagem do choro, Mehmari brinca com alusões mais ou menos explícitas, que vão de Bach e Monteverdi a Brahms e Villa-Lobos, com toques de Tom Jobim. Não se trata de exibicionismo, mas de uma refinada manipulação dos afetos musicais, em que às vezes uma citação pode se esvair mesmo antes de ser completamente assimilada, para dar lugar a outra que poderia parecer descabida, mas funciona à perfeição nesse mosaico pós-moderno de referências. No Theatro São Pedro, o cravo do contínuo foi tocado pelo próprio compositor, que enriquecia a partitura escrita com esfuziantes comentários improvisados – quase uma ópera à parte. Foi fundamental sua química com Rafael Cesário, de sonoridade cálida e musicalidade exuberante, escalado para tocar a parte solista de violoncelo que Mehmari previu como uma espécie de alter ego musical de Inácio – e nos brindou com alguns dos momentos mais inspirados da noite.

A escrita vocal é também primorosa, explorando o que cada registro pode entregar de melhor, sem tensionar demasiado as tessituras, nem empregar intervalos incômodos. No tratamento vocal do texto, o compositor alia a atenção ao significado que vem da escola barroca à inteligibilidade do português brasileiro que caracteriza a MPB, fazendo quase desnecessárias as legendas projetadas no alto do palco.

Difícil exagerar os méritos de Maíra Ferreira, que teve a tarefa de comandar os talentosos, porém inexperientes integrantes da Orquestra Jovem do Theatro São Pedro.

Na récita da sexta-feira, dia 23, difícil exagerar os méritos de Maíra Ferreira – que eu jamais vira à frente de uma orquestra, e que teve a tarefa de comandar os talentosos, porém inexperientes integrantes da Orquestra Jovem do Theatro São Pedro. Nessas condições, evitar desastres de desencontro e afinação já seria uma tarefa hercúlea. Mas Maíra pôde mais, e conseguiu fazer música. O fosso da orquestra exalou o colorido bastante imaginativo da instrumentação mehmariana; a regente mostrou-se plenamente à vontade dentro do idioma musical do compositor (cuja Cantata sobre poemas de Cruz e Souza ela estreou com brilho, ano passado, no Theatro Municipal de São Paulo, à frente do Coral Paulistano, da qual é regente titular), e acompanhou com muito carinho e sensibilidade as jovens vozes solistas.

Dentre elas, Alessandra Wingter exibiu um promissor timbre de soprano lírico como Carlota, secundada pela intensidade do tenor Wagner Platero como Inácio, e pela ginga de Robert Wilian como Barbosa. Vale destacar ainda a convincente Mãe de Maria Thereza, e a luxuosa participação de Juliana Taino como Preta.

A encenação ficou a cargo de Julianna Santos, que comandou sua equipe 100% feminina com o habitual bom gosto e sensibilidade. Embora os figurinos fossem “de época”, a montagem nada teve de engessado, ou de aroma mofado de brechó. Uma cenografia limpa e um uso sóbrio, porém eficiente da luz, garantiram uma proposta que soube não apenas destacar os acontecimentos externos do libreto, como ainda colocar em relevo as motivações interiores e psicológicas dos personagens.

Em ópera, o tempo dramático é um desafio – amplificado quando o tema é cômico. O machete passou ligeiro – e, graças à beleza de sua música, deixando um gosto de “quero mais”. Que venham mais óperas de Mehmari.

[O machete ainda terá récitas no sábado dia 24, às 20h, e no domingo dia 25, às 17h]

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Cena de ‘O machete’, de André Mehmari
Cena de ‘O machete’, de André Mehmari (divulgação, Heloísa Bortz)

 

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